2007-12-14

"A miragem", Vinicius de Moraes

Não direi que a tua visão desapareceu dos meus olhos sem vida
Nem que a tua presença se diluiu na névoa que veio.
Busquei inutilmente acorrentar-te a um passado de dores
Inutilmente.
Vieste – tua sombra sem carne me acompanha
Como o tédio da última volúpia.
Vieste – e contigo um vago desejo de uma volta inútil
E contigo uma vaga saudade…
És qualquer coisa que ficará na minha vida sem termo
Como uma aflição para todas as minhas alegrias.
Tu és a agonia de todas as posses
És o frio de toda a nudez
E vã será toda a tentativa de me libertar da tua lembrança.

Mas quando cessar em mim todo o desejo de vida
E quando eu não for mais que o cansaço da minha caminhada pela areia
Eu sinto que me terás como me tinhas no passado –
Sinto que me virás oferecer a água mentirosa
Da miragem.
Talvez num ímpeto eu prefira colar a boca à areia estéril
Num desejo de aniquilamento.
Mas não. Embora sabendo que nunca alcançarei a tua imagem
Que estará suspensa e me prometerá água
Embora sabendo que tu és a que foge
Eu me arrastarei para os teus braços.

2007-10-04

«Circo», José Saramago

Poeta não é gente, é bicho raro
Que de jaula ou gaiola se escapou
E anda pelo mundo às cabriolas,
Aprendidas no circo que inventou.
Estende no chão a capa que o disfarça,
Faz do peito tambor, e rufa, salta,
É urso bailarino, mono sábio,
Ave de bico torto e pernalta.
Ao fim toca a charanga do poema,
Todo feito de notas arranhadas,
E porque bicho é, bicho ali fica,
A uivar às estrelas desprezadas.

«Despedida na ausência», Ana Margarida Falcão (excerto)

Um riso a completar na tua inexistência
na ausência de quem não pode partir.
Um riso a completar na transgressão da incerteza
na despedida inventada por inventar
amanhã
ou hoje
devagar
em silêncio.

in Poemas, Ilha 4, Ed. CMF, 1994

2007-09-07

«Porque», Sophia de Mello Breyner

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina caiada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

2007-08-29

"Hoje não", José Luís Peixoto (excerto)

Para quem se vai embora é sempre mais fácil. Pelo menos, muda de ares. Quem fica tem de respirar os restos de epiderme polvilhados sobre os móveis da casa. Neste caso, eu era essa pessoa de narinas abertas. Esse destino estava traçado desde o primeiro dia. (...) Eu não ia a lado nenhum.

2007-08-25

Carla Bruni, "Quelqu'un m'a dit"

On me dit que nos vies ne valent pas grand chose,
Elles passent en un instant comme fanent les roses.
On me dit que le temps qui glisse est un salaud
Que de nos chagrins il s'en fait des manteaux
Pourtant quelqu'un m'a dit...

Que tu m'aimais encore,
C'est quelqu'un qui m'a dit que tu m'aimais encore.
Serait ce possible alors ?

On dit que le destin se moque bien de nous
Qu'il ne nous donne rien et qu'il nous promet tout
Parait qu'le bonheur est à portée de main,
Alors on tend la main et on se retrouve fou
Pourtant quelqu'un m'a dit ...

Que tu m'aimais encore,
C'est quelqu'un qui m'a dit que tu m'aimais encore.
Serait ce possible alors?

Mais qui est ce qui m'a dit que toujours tu m'aimais?
Je ne me souviens plus c'était tard dans la nuit,
J'entend encore la voix, mais je ne vois plus les traits
"il vous aime, c'est secret, lui dites pas que j'vous l'ai dit"
Tu vois quelqu'un m'a dit...

Que tu m'aimais encore, me l'a t'on vraiment dit...
Que tu m'aimais encore, serais ce possible alors ?

On me dit que nos vies ne valent pas grand chose,
Elles passent en un instant comme fanent les roses
On me dit que le temps qui glisse est un salaud
Que de nos tristesses il s'en fait des manteaux,
Pourtant quelqu'un m'a dit que...

Que tu m'aimais encore,
C'est quelqu'un qui m'a dit que tu m'aimais encore.
Serait ce possible alors ?

Para ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=fMUedRUJ_HA&mode=related&search=

2007-07-21

"Quase perfeito", Donna Maria (música)

Sabe bem ter-te por perto
Sabe bem tudo tão certo
Sabe bem quando te espero
Sabe bem beber quem quero

Quase que não chegava
A tempo de me deliciar
Quase que não chegava
A horas de te abraçar
Quase que não recebia
A prenda prometida
Quase que não devia
Existir tal companhia

Não me lembras o céu
Nem nada que se pareça
Não me lembras a lua
Nem nada que se escureça
Se um dia me sinto nua
Tomara que a terra estremeça
Que a minha boca na tua
Eu confesso não sai da cabeça

Se um beijo é quase perfeito
Perdidos num rio sem leito
Que dirá se o tempo nos der
O tempo a que temos direito
Se um dia um anjo fizer
A seta bater-te no peito
Se um dia o diabo quiser
Faremos o crime perfeito


...

Para ouvir: http://donnamarialetras.blogspot.com/

2007-07-18

"Há poetas [...]", Carlos Nogueira Fino

há poetas que se cruzam comigo todos os dias
sem uma palavra
as esplanadas estão invariavelmente atravancadas deles
atrás dos seus olhos de lentes coloridas [...]

(Carlos Nogueira Fino, Funchal, 2004)

Momentos de sombra

Amar é um monólogo.

2007-07-03

"A estrela de Gonçalo Enes", Rosa Lobato de Faria (excerto)

Foi a estrela Sírius que o levou até ao mar.
Gonçalo Enes vivia no campo com a mãe, mas tinha aquele enlevo de levantar os olhos da terra, que trabalhava de dia, para o céu que o atraía de noite.
Quando a mãe dormia, se o tempo era quente e a noite serena, vinha sentar-se no escabelo do alpendre a ouvir os ralos e a tentar decifrar aquela imensidão de estrelas que pareciam falar-lhe. Foi o Padre Palma que lhe disse que aquela estrela se chamava Sírius e era a mais brilhante da abóbada celeste a seguir a Vénus, que afinal não era estrela, o que confundiu o pobre Gonçalo que não lhe achava grande diferença das outras estrelas, só maior e menos tremeliquenta. E então concentrou o seu amor pelas estrelas naquela ali, tão formosa, que o fazia pensar se a veriam outros em outras paragens, ou se só ele, no seu palminho de terra, do alpendre da sua casinha caiada, era capaz de enxergar.

2007-06-29

Momentos de luz

"O mundo começa e acaba numa gare ferroviária: embarca-se e a vida passa pela janela em contra-mão."

(Manuel Jorge Marmelo, in O Profundo Silêncio das Manhãs de Domingo, 2007)

2007-06-02

"O Último Cais", Helena Marques (excerto)

André Villa trocara Malta pela Madeira nessa época agitada e fecunda que desembocaria, já ao findar do século, na Revolução Francesa. André era, então, muito jovem. Que experiências teria vivido, que passado lhe dera origem, que motivara a sua migração, como seria – pergunta-se Raquel – esse avô desconhecido que deixara negócios de vinhos, tapetes turcos, pratas antigas e livros italianos? Raquel alimenta o desejo de partir à descoberta de La Valetta, a cidade dos seus antepassados. Conhecendo só os Passos, a família a quem se ligou o primeiro Villa ao chegar à Madeira, sente-se incompleta e inexplicada. Quem eram os Villas, como viviam, como eram essas mulheres de quem ela teria herdado, ao que conjecturava, o cabelo cor de vinho velho, as pernas altas e a rebeldia? A sua paixão pelo mar e pelas viagens que nunca fez, permite-lhe a cumplicidade, tão dolorosa por vezes, com que aceita as fugas de Marcos. Ele acabou, contrafeito e reticente, por admitir a palavra: fuga, pois então é de fuga que se trata, Marcos. Não de mim, amor, ou até, confessa, um pouco também de mim. Mas sobretudo fuga do tédio, do consultório, do hospital, dos doentes, das visitas obrigatórias, dos passeios sempre iguais, das conversas sem surpresa, das mesmas caras e das mesmas cenas, ano após ano. Feliz Marcos que pode quebrar a monotonia e fugir, ser médico da Armada por um ano, sempre que a claustrofobia da ilha atinge o ponto de sufocação. E eu?, pergunta-se Raquel, debruçada à janela da casa do Vale Formoso, à janela onde se debruça todos os dias de toda a sua vida. E eu? Para mim, que nasci mulher, que quis casar e ser mãe, para mim nada mudou desde Penélope. O meu quinhão é esperar. Dentro de casa. Fiando. Ou olhando o mar. Sorri, apesar de tudo. É feliz, apesar de tudo. Casou com quem quis e como quis. Teve a pequena, saborosa liberdade de recusar a segurança quase ofensiva com que Marcos lhe falara em casamento. Falara, não pedira. Vira-o partir sem ceder o menor gesto de simpatia, deixara-o seguir para um estágio em Londres sem uma palavra de esperança. Talvez devesse ter percebido, aí, que as fugas começavam. O caminho do mar tornava-se a opção do desalento, a cura das mágoas, o antídoto do tédio. E eu, meu Deus? Será inelutável o caminho de Penélope?

2007-05-06

"Tu és a esperança, a madrugada", Eugénio de Andrade

Tu és a esperança, a madrugada.
Nasceste nas tardes de setembro,
quando a luz é perfeita e mais dourada,
e há uma fonte crescendo no silêncio
da boca mais sombria e mais fechada.

Para ti criei palavras sem sentido,
inventei brumas, lagos densos,
e deixei no ar braços suspensos
ao encontro da luz que anda contigo.

Tu és a esperança onde deponho
meus versos que não podem ser mais nada.
Esperança minha, onde meus olhos bebem,
fundo, como quem bebe a madrugada.

Eugénio de Andrade (1923 - 2005) in As mãos e os frutos


2007-04-28

"Mais uma noite", Fernando Pinto do Amaral

Mais uma noite, amor. Ao recordar-te
retomo os fins do mundo, a cinza, os dias
manchados de outras lágrimas. Sabias
como eu a cor das sombras, essa arte

que nos engana agora e se reparte
por esquinas e cafés. Já não me guias
os muitos passos vãos, as fantasias
da minha falsa vida.
Vou deixar-te

fugindo-me. Na chuva, sem ninguém,
apenas alguns vultos, o que vem
"e dói não sei porquê" - este deserto
onde te vejo, imagem outra vez,
até de madrugada. O que me fez
sentir o muito longe aqui tão perto?

Fernando Pinto do Amaral, A escada de Jacob

"A meu favor", Alexandre O'Neill

A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer.

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura começa.

Alexandre O'Neill, in No reino da Dinamarca

"As formigas", Boris Vian (XII a XV)

XII

Outra vez aqui. Na cidade, ainda assim, a gente chateava-se menos. Avançamos muito lentamente. Todas as vezes que terminamos os preparativos da artilharia mandamos uma patrulha, e todas as vezes um dos tipos da patrulha volta de sebo limpo por um atirador isolado. Recomeçamos então os mesmos preparativos, mandam-se aviões, deitam tudo abaixo e dois minutos depois os atiradores isolados voltam a dar tiros. Neste momento estão de volta os aviões, conto setenta e dois. Não são lá muito grandes, mas a aldeia também não é. Daqui vêem-se as bombas cair em espiral e fazem um barulho abafado, com bonitas colunas de pó. A gente vai atirar-se ao ataque, mas primeiro é preciso mandar uma patrulha. Diabo de sorte, que já lá estou caído. Temos cerca de quilómetro e meio para fazer a pé, e eu cá não gosto de andar assim tanto, mas nesta guerra nunca pedem a nossa opinião. Amontoamo-nos atrás do entulho das primeiras casas, parece que não resta nenhuma em pé de uma ponta à outra da aldeia. Habitantes parece que também não há muitos, e os que vemos fazem uma cara esquisita se ainda a têm; deviam perceber que não podemos arriscar-nos a perder homens para salvá-los a eles mais às suas casas; a maior parte das vezes casas velhas sem nenhum interesse. De resto é esta a única maneira de se verem livres das que sobram. Em geral compreendem bastante bem o caso, embora alguns pensem que há outros meios… Ao cabo e ao resto é lá com eles, até pode acontecer que tivessem apego às casas, mas com certeza já têm muito menos no estado em que elas estão.
Continuo na patrulha. Mais uma vez sou o de trás, à cautela, e o da frente acaba de cair no buraco de uma bomba cheio de água. Sai de lá com o capacete forrado de sanguessugas. E também traz com ele um grande peixe todo espavorido. No regresso o Mac deu-lhe uma ensinadela, para ele não armar aos cágados; o tipo não gosta nada de chewing-gum.

XIII

Acabo de receber uma carta da Jacqueline, com certeza entregou-a a um tipo qualquer para ir deitá-lá no correio, pois chegou num sobrescrito dos nossos. É uma rapariga esquisita, não haja dúvidas, mas é possível que todas as raparigas tenham ideias pouco vulgares. Desde ontem recuámos um pouco, mas amanhã voltamos a avançar. Sempre as mesmas aldeias completamente arrasadas, até faz neura. Encontrámos um aparelho de rádio novinho em folha. Estão agora a experimentá-lo, mas realmente não sei se é possível substituir uma lâmpada por um coto de vela. Penso que é, porque oiço tocar o Chattanooga; pouco antes de voltar dancei-o com a Jacqueline. Se ainda tiver tempo, creio que vou responder-lhe. Agora é o Spike Jones; também gosto dessa música e bem queria ver isto acabado para comprar uma gravata civil com riscas azuis e amarelas.

XIV

Daqui a bocado partimos. Estamos outra vez perto da frente, e as granadas dá-lhes outra vez para aparecerem. Chove, não faz lá muito frio e o jipe anda bem. vamos descer e continuar a pé.
Parece que já lhes cheira que isto vai acabar. Não sei como é que o vêem, mas cá por mim gostava de safar-me o melhor possível. Ainda há sítios onde a gente apanha uns apertões. Não se pode prever o que nos espera.
Dentro de quinze dias tenho outra licença e já escrevi à Jacqueline para esperar por mim. Talvez seja asneira, pois a gente não deve deixar-se prender.

XV

Continuo de pé em cima da mina. Esta manhã saímos em patrulha e eu ia em último lugar, como é costume; todos lhe passaram ao lado mas senti o estalido debaixo do pé e parei logo. Só rebentam quando se tira o pé. Joguei aos outros o que trazia nos bolsos e disse-lhes para se irem embora. Estou sozinho. Devia esperar que voltassem, mas disse-lhes para não virem; e podia experimentar atirar-me para o chão, de barriga para baixo, mas tenho um verdadeiro horror a viver sem pernas. Só fiquei com o meu caderno e o lápis. Vou atirá-los para longe, antes de mudar de perna, e não posso deixar de fazê-lo porque estou farto da guerra e já começo a sentir um formigueiro.

2007-04-24

"As formigas", Boris Vian (IX, X e XI)

IX

Estamos cercados. Os nossos tanques regressaram e o resto não se aguentou no balanço. Não pude combater a sério por causa do pé, mas encorajei a malta. Foi muito excitante. Da janela via-se bem; os pára-quedistas que chegaram ontem, como eles se mexiam! Agora tenho um cachecol amarelo e verde sobre fundo castanho, que é feito da seda de um pára-quedas e fica muito bem com a cor da minha barba, mas amanhã vou rapá-la por causa da licença de convalescente. Tão excitado aquilo me pôs que arrumei com um tijolo à cabeça do Johnny numa altura em que ele não acertou, e agora dois outros dentes me estão a faltar. Esta guerra é muito bera para os dentes.

X

O hábito enfraquece as sensações. Eu disse isto no Centro da Cruz Vermelha, a dançar com a Huguette – arranjam-me cada nome – e ela respondeu: «És um herói», mas nem tempo tive de encontrar uma resposta fina porque o Mac me bateu no ombro e tive de largá-la. As outras falavam mal e a orquestra tocava muito muito depressa. O pé ainda me incomodava um pouco, mas dentro de quinze dias acabou-se, há que regressar. Engatei uma rapariga das nossas, mas o pano da farda é muito grosso e também nos enfraquece as sensações. Há muitas raparigas por aqui, e lá vão compreendendo aquilo que se lhes diz, o que me põe corado, mas com elas não consegue fazer-se grande coisa. Saí e encontrei muitas outras, de um género totalmente diferente, mais compreensivas mas quinhentos francos o mínimo, e assim mesmo porque fui ferido. Que engraçado terem sotaque alemão.
Depois perdi-me do Mac e bebi muito conhaque. Esta manhã dói-me horrivelmente a cabeça no sítio onde apanhei com o M.P. Estou teso, pois caí na asneira de comprar cigarros franceses a um oficial inglês, senti-os quando iam a passar. Acabo de deitá-los fora, são um pavor, razão tinha o inglês em querer livrar-se deles.

XI

Quando a gente sai dos armazéns da Cruz Vermelha com uma caixa de cartão para pôr os cigarros, sabão, doces e jornais, na rua olham para nós não sei porquê, pois com certeza vendem caro o conhaque e também podem comprar aquilo, para mais as mulheres deles não são de graça. Já tenho o pé quase bem curado. Não acredito que vá ficar muito mais tempo aqui. Vendi os cigarros para poder dar umas curvas e depois cravei o Mac, mas não é fácil ele escorregar. Começo a sentir-me chateado. Logo à noite vou ao cinema com a Jacqueline, encontrei a tipa ontem, no clube, mas acho que não é lá muito esperta porque me afasta sempre a mão e não se mexe nadinha quando dança. Estes soldados de cá metem-me nojo, são muito enxovalhados e não há dois com farda igual. Enfim, só me resta esperar por logo à noite.

2007-04-18

"As formigas", Boris Vian (VI, VII e VIII)

VI

Esta manhã aconteceu-me uma aventura tramada. Estava eu no palheiro, atrás da barraca, e preparava-me para fazer uma partida àqueles dois tipos que se vêem muito bem com o binóculo e tentam acertar em nós. Estava eu a esconder um morteiro de 81 num carrinho de bebé, o Johnny ia mascarar-se de camponesa para o empurrar, e o diabo do morteiro começa por cair-me em cima do pé; coisas destas não param agora de estar sempre a acontecer-me. O tiro saiu e eu para ali assim, caído e agarrado ao pé, quando uma dessas geringonças com engrenagens foi explodir no segundo andar, mesmo em cima do piano do capitão e na altura em que ele lá estava a tocar Jadá. Fez um barulho infernal e estilhaçou o piano. O que mais me dana é o capitão não ter sofrido nada, realmente nada que o impedisse de continuar a martelar com toda a força. A sorte foi logo a seguir ter chegado uma de 88 ao quarto. O capitão não viu que o fumo do meu morteiro é que tinha facilitado o alvo, e ainda por cima me agradeceu dizendo que eu lhe salvara a vida, pois fora obrigado a descer cá abaixo. Não é assunto que agora me interesse, pois o pior de tudo são os meus dois dentes partidos mais a garrafeira dele, que estava toda debaixo do piano.
O cerco é cada vez maior, isto cai-nos em cima sem dar descanso. Felizmente, o tempo começa a desanuviar, em doze horas só estão a chover nove e daqui a um mês já podemos contar com reforços de avião. Temos víveres que dão para três dias.

VII

Os aviões começam a mandar-nos umas coisas que caem de pára-quedas. Ao abrir a primeira tive uma decepção, lá dentro só havia uma data de remédios. Troquei-os no médico por duas barras de chocolate com nozes, coisa da boa, nada que se pareça com a trampa das rações, e meio flask de conhaque; mas depois ele desforrou-se a amanhar-me o pé esborrachado. Tive de devolver o conhaque, de outro modo a esta hora já só tinha um pé. Lá em cima aquilo começa outra vez a roncar, depois há uma aberta pequena e mandam mais pára-quedas, mas agora são tipos, segundo me parece.

VIII

Eram mesmo tipos. Dois muito pândegos. Parece que levaram todo o caminho a fazer golpes de judo um ao outro, a arrear castanhas, a pintar a manta. Saltaram ao mesmo tempo e puseram-se a brincar, cortavam à faca as cordas dos pára-quedas. Por má sorte o vento separou-os e viram-se obrigados a continuar com tiros de espingarda. Poucas vezes vi atiradores tão bons. Mas depois a gente teve de enterrá-los porque caíram de alto demais.

2007-04-14

"As formigas", Boris Vian (IV e V)

IV

Eu bem dizia que andavam a tramar alguma. Chegaram quatro tanques bastante perto de nós. Vi o primeiro a sair e pouco depois parar. Uma granada tinha desfeito uma das lagartas, que de repente se desenrolou com um pavoroso ruído de sucata, mas o seu canhão é que não avariou por tão pouco. A gente agarrou num lança-chamas; nesta coisa, aqui, a maçada é ter-se de rasgar a capota dos tanques e só depois o lança-chamas ser posto a funcionar; sem isso o tanque rebenta (como uma castanha) e os tipos que vão lá estão fritos. Eram três a rasgar a capota com uma serra de metais, mas como estavam a chegar mais dois tanques fomos obrigados a dar cabo deste, mesmo sem o rasgar. O segundo também se foi à viola e o terceiro deu meia volta, só a fingir porque vinha de marcha-atrás. Aquela coisa de ele desatar a dar tiros aos tipos que vinham atrás tinha-nos espantado um pouco. Deu-nos uma prenda de anos que foi doze granadas de 88; e se quisermos novamente a casa vamos ter de voltar a construí-la, embora seja mais rápido tomar conta de outra. Acabámos por afastar o terceiro tanque com uma bazuca carregada de pós de espirrar; os que lá iam deram uma cabeçada tão forte na blindagem, que só saíram cadáveres de dentro. Apenas o condutor vivia um pouco, mas entalou a cabeça no volante e não conseguiu tirá-la, por isso achámos preferível cortar a cabeça do tipo em vez de dar cabo do tanque, que ainda estava bom. Depois chegaram motociclistas com espingardas-metralhadoras, vinham atrás a fazer um chiqueiro dos diabos, mas resolvemos o caso com uma velha ceifeira-atadeira. Entretanto, ainda nos caíram na cabeça algumas bombas e mesmo um avião que o nosso D. C. A. tinha abatido sem querer, pois em princípio só atirava aos tanques. Na nossa companhia perdemos o Simon, o Morton, o Buck e o P.C. Ficámos com os outros e um braço do Slim.

V

Sempre cercados. Agora há dois dias que não pára de chover. No telhado só há telha sim, telha não, mas as gotas caem onde devem cair e realmente não estamos molhados. Não há maneira de conseguir saber-se quanto tempo isto ainda vai durar. Patrulhas que nunca mais acabam, mas sem treino é bastante difícil a gente olhar pelo periscópio e é cansativo aguentar mais de um quarto de hora com lama por cima da cabeça. Ontem encontrámos outra patrulha. A gente não sabia se era dos nossos ou daqueles outros, ali da frente, mas debaixo de lama nada se arriscava em atirar, porque era impossível fazer qualquer espécie de dano; por isso as espingardas desataram logo aos tiros. Já tentámos tudo para acabar com esta lama. Deitámos-lhe gasolina em cima; largando fogo ela seca mas depois, se a pisamos, ficam os pés assados. A única solução será cavar até à terra firme, mas ainda é mais difícil patrulhar em terra firme do que na lama. A gente vai acabar, mais ou menos, por habituar-se. O aborrecido é ter aparecido em tanta quantidade que até faz ondas. De momento vá lá, só chega à trincheira, mas de um instante para o outro vai subir de novo até ao primeiro andar, e que desagradável há-de ser.

2007-04-11

"As formigas", Boris Vian (II e III)

II

Depois entrámos pela costa adentro e experimentámos pôr em prática os conselhos dos instrutores e as coisas aprendidas nas manobras. O jipe do Mike chegou nessa mesma altura. Quem vinha a guiar era o Fred, e o Mike estava partido ao meio; tinham-no encontrado metido com um arame-farpado. Andamos a proteger com chapa de aço a dianteira das outras carripanas, porque está quente demais para se andar de pára-brisas levantado. Isto aqui ainda chia por todos os lados e fazemos patrulha atrás de patrulha. Parece que avançámos mais depressa do que devíamos, e é difícil manter contacto com o reabastecimento. Esta manhã lixaram-nos nove tanques, pelo menos, e aconteceu uma estranha história: um foguetão arrastou uma bazuca e o tipo foi agarrado àquilo, preso atrás pela bandoleira. Ainda se deixou levantar quarenta metros antes de descer de pára-quedas. Julgo que vamos ser obrigados a pedir reforços, porque ainda agora ouvi uma coisa parecida com o ruído de uma grande tesoura de podar, julgo que nos cortaram a retaguarda…

III

… Faz-me lembrar há seis meses, quando acabavam de cortar-nos a retaguarda. Devemos estar completamente cercados, e o Verão já acabou. Por sorte ainda há comida e munições. Temos de fazer rendições de duas em duas horas, e é cansativo estar de sentinela. Os outros tiram as fardas aos nossos, quando fazem prisioneiros, dá-lhes para se vestirem como nós e temos que desconfiar. Com tudo isto deixou de haver luz eléctrica e apanhamos com granadas que vêm de todos os lados ao mesmo tempo. Para já, tentamos restabelecer contacto com a retaguarda; têm de mandar-nos aviões, pois os cigarros começam a faltar. Lá fora há barulho, qualquer coisa andará na forja, a gente nem temos tempo de tirar o capacete.

2007-04-10

"As formigas", Boris Vian (I.1.)

Chegou o capitão. Só nos restavam onze. Disse que não eram lá muitos mas mesmo assim a gente ia desenrascar-se. Mais tarde enviaram os que faltavam. Para já, mandou-nos cavar buracos. São para dormir, pensava eu, mas afinal não eram, tivemos de saltar para dentro deles e continuar a atirar.
Por sorte aquilo ia aliviando. Começavam a desembarcar tipos às carradas, mas os peixes metiam-se entre as pernas deles, para se vingarem da barafunda, e a maior parte malhava na água e levantavam-se a bufar que era um caso sério. Mas alguns não se levantavam e afastavam-se a flutuar nas ondas, o capitão disse para avançarmos atrás do tanque e neutralizamos o ninho de metralhadoras que voltava a dar sinal.
Fomos atrás do tanque. Eu em último lugar porque não me fio lá muito no travão daquelas geringonças. Seja como for, é mais cómodo andar atrás do tanque porque não precisamos de nos embaraçar nos arames-farpados e os postes caem sozinhos. Eu não gostava era do modo como esborrachavam os cadáveres, com o diabo de um ruído que só recordá-lo nos deixa doentes – mas na altura nos parece original. Passados três minutos o tanque ia ao ar por causa de uma mina, e começou a arder. Dois tipos não conseguiram sair, o terceiro conseguiu mas ficou com um pé dentro do tanque e nem sei se chegou a dar por ela antes de morrer. Bem, duas granadas já tinham acertado no ninho das metralhadoras, partido os seus ovos mais os fulanos que lá estavam. Os que desembarcavam iam encontrado aquilo melhor, mas foi a vez de uma bateria antitanque desatar aos fogachos e vinte, pelo menos, malharam na água. Eu cá deitei-me de barriga para baixo. Do meu lugar só era preciso inclinar-me um pouco para poder vê-los aos tiros. A carcaça do tanque incendiado protegia-me um pouco, e lá consegui fazer boa pontaria. O artilheiro caiu a torcer-se todo, com certeza acertei baixo demais, mas não conseguia dar cabo dele porque primeiro era preciso mandar os outros três à viola. Foi difícil, por sorte o barulho do tanque incendiado não me deixava ouvi-lo berrar – e também fui azelha a matar o terceiro. Mas aquilo continuava a rebentar e deitar fumo por todos os lados. Dei uma boa esfregadela aos olhos porque o suor não deixava ver bem, e o capitão voltou. Só conseguia utilizar o braço esquerdo. «Podes ligar-me o braço direito ao corpo, muito apertado?» Respondi que sim e comecei a enrodilhá-lo com ligaduras até ao momento em que saltou a pés juntos do chão e me caiu em cima, pois atrás dele rebentara uma granada. Ficou instantaneamente teso como um carapau, parece que é assim quando se morre muito cansado, pelo menos foi mais fácil tirá-lo de cima de mim. Com certeza adormeci, e quando acordei o barulho já estava mais longe e um desses tipos que usam cruzes vermelhas à volta do capacete metia-me café pela goela abaixo.

2007-04-09

"As formigas", Boris Vian (I)

Chegámos esta manhã e fomos mal recebidos porque na praia não estava ninguém, só uma porção de tipos mortos ou bocados de tipos, tanques e camiões desfeitos. Um pouco de todo o lado apareciam balas, numa destas confusões que não me agradam muito. Saltámos para a água, mas era mais funda do que parecia e escorreguei numa lata de conservas. Um balásio que nos mandaram levou três quartos da cara ao tipo que ia mesmo mesmo atrás de mim, e guardei a lata de conservas como recordação. Meti os bocados da cara no capacete e ofereci-lhos, o tipo foi-se dali para fazer o curativo mas parece que escolheu mau caminho porque se meteu pela água até quase não ter pé, e não acredito que pudesse ver o fundo de forma a não ficar perdido.
Eu sim, corri para onde devia, mas não me livrei de levar com uma perna nas trombas. Apeteceu-me dizer umas boas ao tipo, mas a mina só tinha deixado uns bocados nada fáceis de encaixar; por isso não lhe liguei e lá fui andando.
Dez metros adiante juntei-me a três outros tipos que estavam atrás de um bloco de betão a dar tiros à esquina de um muro que havia mais acima. Suavam muito, estavam num pinto e eu devia estar na mesma, ajoelhei-me e também desatei aos tiros. O tenente apareceu agarrado à cabeça e a escorrer-me encarnado da boca. Vinha com cara de poucos amigos e estendeu-se logo na areia, de boca aberta e braços para a frente. Boa porcaria a areia deve ter ficado. Era dos poucos lugares que ainda se mantinha limpo.
Dali, o nosso barco encalhado começou por ter ar de uma coisa muito estúpida, e depois, quando lhe acertaram duas granadas, nem ar de barco já tinha. Não foi coisa que me caísse bem porque dentro dele ainda havia dois amigos a tentarem levantar-se, para saltarem mais as balas que lhes tinham acertado. Bati no ombro dos três que andavam aos tiros comigo, e disse: «Venham daí, vamos lá.» Claro que os mandei à frente, e foi coisa bem topada porque ao primeiro e ao segundo nem alma se lhes aproveitou com os fogachos que os outros dois nos mandavam, e à minha frente só restava um, pobre rapaz sem sorte nenhuma, pois mal dera cabo do mais bera já o outro arranjava maneira de o matar, antes de eu poder tratar-lhe da saúde.
Aquele par de sacanas tinha uma metralhadora e cartuchos em barda, atrás da esquina do muro. Apontei a metralhadora para o lado oposto, carreguei a fundo naquilo mas tive que parar logo porque me dava cabo dos ouvidos e encravou. Devem-nas regular para não dispararem na direcção errada.
Ali estava-se a bem dizer sossegado. Do alto da praia podia gozar-se o panorama. No mar era um fumo dos diabos e a água dava espirros muito altos. Também se viam os clarões das salvas dos grandes couraçados, e as bombas passavam por cima da minha cabeça com um barulho esquisito e abafado como o som grave de um cilindro, na guita pelo ar fora.
[continua]

2007-04-01

"A lentidão", Milan Kundera (excerto)

Sentimos vontade de passar o resto da tarde e a noite num solar. Em França, muitos deles estão transformados em hotéis: um quadrado de verdura perdido numa extensão de fealdade sem verdura; um pequeno trecho de áleas, de árvores, de pássaros no meio de uma imensa rede de estradas. Estou ao volante e, pelo retrovisor, observo um automóvel que vem atrás de mim. A luzinha da esquerda pisca e todo o automóvel emite ondas de impaciência. O condutor espera o ensejo de me ultrapassar; espreita esse momento como uma ave de rapina espreita um pardal.
Véra, a minha mulher, diz-me: «A cada cinquenta minutos morre um homem nas estradas de França. Olha para eles, para estes doidos todos que correm à nossa volta. São os mesmos que sabem mostrar-se de uma prudência absolutamente extraordinária quando vêem assaltar uma velha na rua, mesmo diante dos olhos. Como é que podem não ter medo quando estão ao volante?»
Que responde? Talvez o seguinte: o homem inclinado para a frente na sua motorizada só pode concentrar-se no segundo presente do seu voo; agarra-se a um fragmento do tempo cortado tanto do passado como do futuro; é arrancado à continuidade do tempo; está fora do tempo; por outras palavras, está num estado de êxtase; nesse estado nada sabe da sua idade, nada da mulher, nada dos filhos, nada das suas preocupações e, portanto, não tem medo, porque a fonte do medo está no futuro, e quem se liberta do futuro nada tem a temer.
A velocidade é a forma de êxtase com que a revolução técnica presenteou o homem. Ao contrário do motociclista, quem corre a pé continua presente no seu corpo, obrigado ininterruptamente a pensar nas suas bolhas, no seu ofegar; quando corre sente o seu peso, a sua idade, mais consciente do que nunca de si próprio e do tempo da sua vida. Tudo muda quando o homem delega a faculdade da velocidade numa máquina: a partir de então, o seu próprio corpo sai do jogo e ele entrega-se a uma velocidade que é incorpórea, imaterial, velocidade pura, velocidade em si mesma, velocidade êxtase.
Curiosa aliança: a fria impessoalidade da técnica e as chamas do êxtase. Estou a lembrar-me dessa americana que, há trinta anos, expressão severa e entusiástica, qual apparatchik do erotismo, me deu uma aula (glacialmente teórica) sobre a libertação sexual; a palavra que se repetia mais vezes no seu discurso era a palavra orgasmo; contei: quarenta e três vezes. O culto do orgasmo: o utilitarismo puritano projectado na vida sexual; a eficácia contra a ociosidade; a redução do coito a um obstáculo que se deve ultrapassar o mais depressa possível para se chegar a uma explosão extática, único verdadeiro alvo do amor e do universo.
Porque terá desaparecido o prazer da lentidão? Ah, onde estão os deambulantes de outrora? Onde estão esses heróis indolentes das canções populares, esses vagabundos que preguiçam de moinho em moinho e dormem ao relento? Terão desaparecido com os caminhos campestres, com os prados e as clareiras, com a natureza? Há um provérbio checo que descreve a sua ociosidade por meio de uma metáfora: contemplam as janelas de Deus. Quem contempla as janelas de Deus não se aborrece; é feliz. No nosso mundo, a ociosidade transformou-se em desocupação, o que é uma coisa muitíssimo diferente: o desocupado sente-se frustrado, aborrece-se, procura constantemente o movimento que lhe faz falta.
Olho para o retrovisor: sempre o mesmo automóvel que não consegue ultrapassar-me por causa da circulação em sentido contrário. Ao lado do condutor, está sentada uma mulher; porque é que o homem não lhe conta alguma coisa engraçada? Porque não lhe põe a palma da mão no joelho? Em vez disso, amaldiçoa o automobilista que, à sua frente, não vai suficientemente depressa, e também a mulher não pensa em tocar com a mão o condutor, conduz mentalmente ao mesmo tempo que ele e tal como ele amaldiçoa-me.
E eu penso nessa outra viagem de Paris para um solar no campo, que teve lugar há mais de duzentos anos, na viagem da Senhora de T. e do jovem cavaleiro que a acompanhava. É a primeira vez que estão tão perto um do outro, e a indizível atmosfera sensual que os envolve nasce justamente da lentidão do ritmo: balouçados pelo movimento da carruagem, os dois corpos tocam-se, primeiro sem o saberem, depois sabendo-o, e a história principia.

2007-03-29

"A meu favor", Alexandre O'Neill

A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer.

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.

2007-03-24

"Porque", Sophia M. B. Andresen

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina caiada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

2007-03-21

"Nas tuas mãos", Inês Pedrosa (excerto)

"O amor não tem portas que possamos abrir e fechar, nem passagens secretas para um sótão onde possamos fazer férias dele. Toma conta de tudo em nós, envolve-nos como um lençol de tédio, sedoso, infindo. Ninguém fala deste tédio sublime, tão contrário à acção e à eficácia, imóvel inimigo do progresso do mundo. Só no trono do sonho, iluminado e funesto, o amor interessa. Prolongada, a vida torna-se demasiado curta e o amor ganha o ritmo da chuva que bate leve, levemente.
Habituámo-nos a tratar os amores como electrodomésticos: quando se escangalham, vamos ao supermercado comprar um novo, igualzinho ao que o outro era. Consertar? Não compensa: o arranjo sai caro, além de que nunca se sabe muito bem onde procurar a peça que falta. Substituímos a eternidade pela repetição, e o mundo começou a tornar-se monótono como uma lição de solfejo. Tememos a maior das vertigens, que é a da duração. Mas no fim de cada sucesso há um cemitério como o de Julieta e Romeu, apenas com a diferença da aura, que é afinal tudo. As pessoas morrem cada vez mais velhas e cansadas de correr, e os seus cadáveres tensos soçobram de ridículo sobre a terra das suas efémeras conquistas."

2007-03-12

"O Amor", Nuno Júdice

Deus – talvez esteja aqui, neste
pedaço de mim e de ti, ou naquilo que,
de ti, em mim ficou. Está nos teus
lábios, na tua voz, nos teus olhos,
e talvez ande por entre os teus cabelos,
ou nesses fios abstractos que desfolho,
com os dedos da memória, quando os
evoco.

Existe: é o que sei quando
me lembro de ti. Uma relação pode durar
o que se quiser; será, no entanto, essa
impressão divina que faz a sua permanência? Ou
impõe-se devagar, como as coisas a que o
tempo nos habitua, sem se dar por isso, com
a pressão subtil da vida?

Um deus não precisa de tempo para
existir: nós, sim. E o tempo corre por entre
estas ausências, mete-se no próprio
instante em que estamos juntos, foge
por entre as palavras que trocamos, eu
e tu, para que um e outro as levemos
connosco, e com elas o que somos,
a ânsia efémera dos corpos, o
mais fundo desejo das almas.

Aqui, um deus não vive sozinho,
quando o amor nos junta. Desce dos confins
da eternidade, abandona o mais remoto dos
infinitos, e senta-se aos pés da cama, como
um cão, ouvindo a música da noite. Um
deus só existe enquanto o dia não chega; por
isso adiamos a madrugada, para que não
nos abandone, como se um deus
não pudesse existir para lá do amor, ou
o amor não se pudesse fazer sem um deus.

2007-03-11

"Ele e Ela", Ramalho Ortigão (conto)

«A Júlio César Machado
Meu velho amigo:
- Aqui tens a história que ontem me contou, ao separarmo-nos de ti depois de jantarmos juntos, aquele sujeito que tu conheces.

* * *

Eu tinha chegado de um porto de França em companhia de uma alemã, que entrevira em Paris, e com quem me encontrei depois a bordo do paquete que tinha de nos trazer ao Tejo. Era uma senhora de maneiras muito graves e de fisionomia perfeitamente distinta, sincera e despresumida, como quasi toda a gente dessa bela raça germânica, que floresce em todos os climas como na sua pátria, e aceita toda a convivência como a da sua família. Desembarcámos no Terreiro do Paço. Ela vinha tão abatida e alquebrada pelos efeitos de uma viagem tempestuosa no grosso mar da Gasconha e da Mancha, que eu determinei-me, contra os usos do país a que me recolhia, a oferecer-lhe o meu braço para passearmos por um momento à réstea vivificadora do sol de Lisboa no mês de Janeiro. Soube então que a minha simpática dama se encontrava só na capital, e tinha de partir para o Porto, assim como eu, no dia imediato. Falámos por algum tempo, ela das suas saudades, eu das minhas recordações, até que a acompanhei numa carruagem ao hotel de Bragança, onde ficámos de reunir-nos na manhã seguinte, para seguir no caminho de ferro para a cidade das camélias. À hora aprazada fui encontrar-me efectivamente com ela e achei-a pronta para partir, radiante de saúde, vestida com um trajo de primavera, tendo um ramo de flores junto do rolo do seu édredon, e mostrando-se maravilhada da suave brandura do clima e da engenhosa convenção que levava os habitantes a usarem paletot, com o fim de fazerem acreditar uns aos outros e a quem viesse de fora que também por cá se tinha inverno. Saímos a pé pelo braço um do outro, e fomos almoçar a um café, fazendo horas para chegar a Santa Apolónia a tempo de entrar no trem e partir. Achámo-nos no vagão, acompanhados unicamente de um respeitável ancião, o sr. S. M., que lia filosoficamente um número do Diário de Notícias no canto do compartimento oposto àquele em que nós ficámos um defronte do outro. Estava com efeito uma bela e donosa manhã sem calor nem frio, sem nuvens no céu, sem lama na terra e sem pó no ar. De um lado a frescura das laranjeiras e o reluzente viço das hortas que bordam a estrada até o Carregado, e do outro o límpido cristal do Tejo em plena majestade iam-nos acompanhando como um sorriso e um afago da natureza em hora de bom humor. A minha companheira de viagem tinha remoçado cinco anos com este brando acolhimento do amorável país do seu exílio. Estava buliçosa como um estudantinho, tinha desemolhado o seu ramalhete à força de o respirar com frenesi, até deixar ver toda a alvura dos seus pequeninos dentes com a infantil alegria de uma felicidade inteiramente desanuviada, e era muito bonita, assim contente e alegre. Pelas quatro horas da tarde estávamos perto de Aveiro e principiava a desenrolar-se aos nossos olhos a esplêndida paisagem do norte de Portugal. As campinas estavam virentes e viçosas como em plena primavera, o sol inclinava-se para o ocaso entre uns ténues vapores de opala e de ouro, respirava-se a brisa fragrante das ondas e havia no ar como um fluido de melancolia e de saudade. Era a plácida morbidez de uma tela de Correggio. A jovem alemã, que eu tinha defronte de mim, havia tirado o chapéu e recostado para trás a sua bela cabeça, aureolada por uma espécie de vaga irradiação proveniente do azul dos seus olhos e da expressão dos seus lábios arqueados num sorriso triste como o dos sonhadores, dos namorados e dos poetas. Eu atirei fora um charuto que ela me permitira acender, e preguntei-lhe como lhe parecia a paisagem que íamos vendo. - Ideal murmurou ela, quasi num suspiro. Este laconismo deixou-me entender que estava com uma verdadeira apreciadora do belo, uma dessas criaturas privilegiadas em quem a contemplação dos grandes espectáculos da natureza entumece o coração e supita a palavra fazendo bailar as lágrimas nos olhos. Entendi que não devia perturbar o seu pensamento, a sua ilusão talvez, ou por ventura o seu êxtase, e pus-me a olhar silenciosamente para ela. Ao cabo porém de meia hora não pude resistir à tentação de lhe dizer: - Que horas estas para dois entes que se amassem! - É verdade, confirmou ela. - Como deve ser bom, nestes momentos em que a saudade vaga e indefinida nos inunda como um banho de recordações, de esperanças e de afectos, ter junto de nós um honrado e leal coração que nos entenda e nos ame, e poder a gente casar ternamente com o hino do crepúsculo, o hino da sua alma! Dá-me licença que a ame... Ela fitou-me com um olhar penetrante. - ... por cinco minutos? terminei eu - ou por um quarto de hora?... daqui até se pôr o sol? No fim desse prazo recebe cada um os protestos que adiantou, retira as juras que fez, e fica senhor de si como dantes. É como quem joga a tentos. - Assim, pode ser, disse-me ela rindo, mas verá que se aborrece antes de chegar ao meio da partida... - Porquê? - Porque não faz uma vasa. - Quem sabe? Conforme o lado para que ficarem os trunfos. - Demos então as cartas. - Eu principio. Conto trinta anos de idade, sou pobre e tenho o coração ocupado, mas deu-me Deus um génio apaixonado. . . sincero! Entendo eu que uns dedos fininhos, cor-de-rosa, elegantemente tratados e perfumados são feitos para receber de quando em quando um beijo; que um olhar inteligente e suave deve descer ao fundo da nossa alma, se nós temos uma alma pura, e dessedentar-se nela como uma pomba em um lago; que a elegância, o espírito e a educação de uma mulher amável devem em todo o tempo receber o culto da admiração e do reconhecimento de um homem de bem, porque é certamente para os homens de bem que Deus permitiu a amabilidade às mulheres honestas... - Mas é amizade o que me está dizendo e o que eu mais prezo! E a única pessoa que conheço em Portugal, e já ninguém poderá agora evitar que seja o meu primeiro amigo... Vou-lhe fazer também as minhas confidências. Tenho contraído grandes encargos de coração. Acredita que seja possível amar-se por cartas muito tempo? - O amor em cartas, objectei-lhe eu, é como um jantar de que não nos oferecem senão a lista. Nada obsta a que seja o mais sumptuoso, mas não é por certo o mais nutriente ... No entanto como em tais banquetes dizem que é a imaginação quem prepara as iguarias mais delicadas... - Eu creio que sou amada... - Por alguém que está longe! a quem escreveu esta manhã uma carta de consolação, de resignação e de esperança... uma carta que dentro de oito dias o há-de fazer chorar, e que ele há-de trazer por muito tempo junto do coração como uma santa relíquia... E em troca desta carta há-de mandar-lhe outra escrita ardentemente com as lágrimas do coração e com o sangue das veias, a qual, antes e depois de se saber de cor, será lida e relida todos os dias entre a oração da manhã e o piedoso beijo deposto no retrato de sua mãe. Veja que ideal ventura! o prazer de amar sem ter do amor o que há nele mais impertinente e mais prosaico: as imperfeições que a convivência descobre e multiplica! E, depois, dentro de um ou dois anos, o prazer de tornarem a ver-se! Aparecer-lhe mais bela, porque a saudade e a esperança poetizam, melancolizam, tresdobram a beleza; e encontrá-lo mais velho, e portanto mais expressivamente homem e mais expressivamente simpático! tê-lo finalmente ao seu lado... (E, nisto, passei para o lado dela, e sentei-me no mesmo sofá em que ela se achava.) - Ouvi-lo, continuei eu, ouvi-lo falar-lhe da ausência e do futuro comum, pondo-lhe aos pés o seu amor, o seu nome e a sua liberdade! Possa Deus reuni-los cedo e não o matar a ele de felicidade na hora suprema em que a vir, sendo-lhe permitido, em paga do seu amor constante, beijá-la na fronte longamente e inebriar-se com a certeza de ser amado pela mulher mais adoraveImente meiga, mais terna e mais simpática! Chegado a este ponto, e falando-lhe já, insensivelmente, com muito mais veemência e afogo do que se emprega para conversar, peguei-lhe nas pontas dos dedos, levantei a mão que ela tinha caída no regaço e pousei os lábios no debrum da luva. Ela então levantou o cabazinho de viagem, que estava colocado entre nós ambos, segurou-o nos joelhos, desafivelou a correia que lhe segurava a tampa, e dando-me uma laranja que tirou de dentro, disse-me com a gravidade indulgente e bondosa de um enfermeiro ou de um médico: - Prescrevo-lhe o regime refrigerante. - Por Deus, me parece que estava precisando da receita! tornei-lhe eu, pondo-me a rir. E, voltando para o lugar que primeiramente ocupava defronte dela, principiei a descascar a laranja e a morder com apetite nesse fruto, que não era por certo o fruto proibido. - Sim, senhor. ia-me dizendo no entanto a minha graciosa companheira, baralhou bem as cartas e arranjou bom jogo! - Ah! então confessa . . . - Confesso-lhe que sim. - Posso oferecer-lhe da minha dieta? preguntei eu, dando-lhe metade da laranja. Ela separou um gomo. - Quando acabar, podemos continuar. - Continuo imediatamente, cortei eu logo, debruçando-me na portinhola para cuspir uma pevide que tinha nos beiços. Senão quando a corrente do ar cortado pela locomotiva levou-me da cabeça o meu chapéu. Preciso abrir para este objecto perdido um parêntese, de cuja substância Deus me livre que se soubesse! Tinha sido feito em Paris por - Pinaud & Amour - esse bonito chapéu tão flexível, que se meteria dentro de um sobrescrito! Era de casimira azul como a minha jaqueta de viagem, forrado de azul-claro com debrum pespontado de seda preta. O próprio Amour me tinha dito ao vender-mo por vinte francos - Cela vous coiffc à merveille - e eu tinha tido a criminosa fraqueza de o acreditar! Aquele chapéu não era para mim somente um chapéu, era um elmo e um arnês. Não me considerava simplesmente coberto quando o punha, considerava-me também armado. Queres que te confesse a verdade? Eu não me teria nunca atrevido a apertar os dedos da minha alemã, nem a beijar-lhe apaixonadamente a luva, se o não trouxesse na cabeça, e era realmente muito mais com o talento dos srs. Pinaud & Arnour, do que com o meu próprio, que eu contava para me fazer passar junto dela por um homem de espírito ! Os cabelos despenteados pelo vento tinham-me caído para cima dos olhos; compreendi que estava ridículo, não podendo esconder este ar sumamente tolo de todo o homem a quem de repente desaparece o chapéu na asa de um tufão. Ela ria às gargalhadas, as quais me caíam na cabeça... na cabeça não - pelas costas abaixo! - como torrentes de água nevada. O sr. S. M., de quem confesso que me tinha completamente esquecido, e que continuava sempre a sua viagem no nosso compartimento, apiedou-se de mim, e, lançando generosamente a mão à rede da carruagem, baixou nos seus braços uma caixa de chapéu do tamanho de um gasómetro, e disse-me assim: - Tenho aqui com que lhe valer!... Entendi que rabearia um castor inteiro para fora daquela toca ambulante, e ia conter com um gesto a benevolência do meu delicado companheiro, quando ele me observou, rebatendo o meu susto com um sorriso: - Não é o que cuida! Está cá dentro o objecto que lhe convém. E dizendo isto, sacou da chapeleira, suspenso por uma aparatosa borla de retrós preto, um barrete de veludo ornado de amores-perfeitos bordados a matiz. Hesitei por um instante entre aceitar o barrete, o que era hediondo, e confessar-lhe medo, o que era pueril. Revesti-me finalmente de todo o meu valor e estendi a dextra para o inocente carapuço, que estava sendo na mão do sr. S. M. gládio da suprema justiça, alfange exterminador da minha pecadora vaidade. Fechei em seguida os olhos como quem vai lançar-se em um abismo, peguei no barrete com ambas as mãos, levantei-o à altura do rosto, deixando-lhe a borla pendente, entreabri os olhos e vi o monstro boquiaberto... Tornei logo a cerrar as pálpebras, e meti a minha infeliz cabeça no seu novo envólucro! Estava consumado. A minha gentil companheira deu-me o golpe de misericórdia inclinando-se para mim, pegando-me em ambas as mãos e dizendo-me entre duas gargalhadas: Valor! acredite... que o amo. Respondeu-lhe o silêncio da morte. O barrete de veludo, circundado do matiz dos amores-perfeitos, cuja borla me caía como o crepe funerário de uma lança ao longo da orelha esquerda, era o túmulo e o epitáfio das minhas ilusões dêsse formoso dia! Ser amado, tendo na cabeça um barretinho de veludo com sua borlazinha ao lado, pedindo para cima da outra orelha a pena de pato ramalhuda e majestosa, insígnia burocrática do guarda-mor pontual e do tabelião zeloso! Ser amado, e ouvi-lo assim dizer nessa hora tremenda pela boca mais engraçadamente zombeteira a que Deus permitiu a momice da provocação! Que havia de retorquir eu em tão horrorosa conjuutura? Mover-me para fazer bambolear sobranceira ao meu coração aquela borla fatal como o espanador dos meus afectos juvenis? ajoelhar-me aos pés dela e pôr-lhe nojosamente no regaço aquela cabeça do feitio e da fazenda de uma afrontosa almofada de costura, ou de uma ignóbil pregadeira de alfinêtes?!. Assim os perdi pois, para todo sempre, a ambos: a ela e a ele; a mais encantadora alemã que meus olhos têm visto e o mais bonito chapéu que em minha cabeça tenho pôsto!

* * *

Encerra esta pequena história a imagem da felicidade e por isso ta dedico a ti, meu querido Júlio, a quem a desejo mais completa e mais perfeita. O que é desgraçadamente a fortuna senão esse chapéu que um pé-de-vento arrebata, e esse amor que a presença de um barrete extingue?»

2007-03-10

"A Peste", Albert Camus (excerto adaptado)

Na manhã do dia 16 de Abril, o doutor Bernard Rieux saiu do seu consultório e tropeçou num rato morto, no meio do patamar. Nesse momento, afastou o bicho sem lhe prestar atenção e desceu a escada. […]
[…] No momento em que o médico entrou, o doente, meio erguido no leito, encostava-se para trás numa tentativa de restabelecer a respiração penosa de velho asmático. A mulher trouxe uma bacia.
- Hem, doutor – disse ele durante a injecção - , eles saem, já viu?
[…] foi mais ou menos por esta época que os nossos concidadãos começaram a inquietar-se com o caso, pois a partir do dia 18 as fábricas e os depósitos apareceram enxameados de centenas de cadáveres de ratos. Em alguns casos, foi necessário acabar de matar os bichos, cuja agonia era demasiado longa. Mas desde os bairros exteriores até ao centro da cidade, por toda a parte onde os nossos concidadãos se reuniam, os ratos esperavam em montes, nos caixotes do lixo ou junto às sarjetas, em longas filas. A imprensa da tarde ocupou-se do caso a partir desse dia e perguntou se a municipalidade se propunha ou não agir e que medidas de urgência tencionava adoptar para proteger os seus munícipes dessa repugnante invasão. A municipalidade não se tinha proposto coisa nenhuma, mas começou por reunir em conselho, para deliberar. […]
Porém, nos dias que se seguiram a situação agravou-se. O número de roedores apanhados ia crescendo e a recolha era cada manhã mais abundante. A partir do quarto dia, os ratos começaram a sair para morrerem em grupos. Das arrecadações das caves, dos esgotos, subiam em longas filas titubeantes, para virem vacilar à luz, girar sobre si mesmos e morrer perto dos seres humanos. À noite, nos corredores ou nas ruelas, ouviam-se distintamente os seus guinchos de agonia. De manhã, nas ruas, encontravam-se junto aos passeios, com uma pequena flor de sangue no focinho pontiagudo, uns inchados e pútridos, outros rígidos e com os bigodes ainda hirtos. Na própria cidade, encontravam-se em pequenos montes, nos patamares e nos pátios. Vinham também morrer isoladamente nos vestíbulos administrativos, nos recreios das escolas, por vezes nos terraços dos cafés. Os nossos cidadãos, estupefactos, encontravam-nos nos locais mais frequentados da cidade. […]
[…] Até então, as pessoas tinham-se apenas queixado de um espectáculo um pouco repugnante. Compreendia-se agora que este fenómeno, de que não se podia ainda avaliar a amplitude nem precisar a origem, tinha qualquer coisa de ameaçador. Só o velho espanhol asmático continuava a esfregar as mãos e a repetir com uma alegria senil: «Eles saem, eles saem.» […]

A morte do porteiro, pode dizer-se, marcou o fim deste período, cheio de sinais desconcertantes, e o início de um outro, relativamente mais difícil, em que a surpresa dos primeiros tempos se transformou, pouco a pouco, em pânico. Os nossos concidadãos – era agora que davam por isso – nunca tinham pensado que a nossa pequena cidade pudesse ser um lugar particularmente designado para que os ratos lá morressem ao sol e que os porteiros lá perecessem de doenças estranhas. […]
[…] No dia seguinte ao da morte do porteiro, grandes brumas cobriram o céu. Chuvas diluvianas e curtas abateram-se sobre a cidade, seguindo-se a estas bátegas breves, um calor de tempestade. […]
Cozia, com efeito, mas nem mais nem menos que uma febre. Toda a cidade tinha febre. […]
[…] Apenas em alguns dias, os casos mortais multiplicaram-se e tornou-se evidente, para aqueles que se preocupavam com esta moléstia curiosa, que se tratava de uma verdadeira epidemia. […]
Rieux reflectia. Pela janela do escritório, olhava a falésia rochosa que se fechava, além, sobre a baía. O céu, embora azul, tinha um reflexo baço, que se esbatia à medida que a tarde avançava.
- É verdade, Castel – respondeu. É quase incrível, mas parece-me bem que é a peste. […]
A palavra «peste» acabava de ser pronunciada pela primeira vez.
...
Este é um romance que vale a pena ler. Albert Camus (Prémio Nobel) não só relata os factos que o título deixa adivinhar como também os sentimentos, muitas vezes contraditórios, que «a peste» provoca nos habitantes da pequena cidade de Orão, que se vê de repente fechada ao exterior por força de um mal desconhecido.

2007-03-07

"Soneto da Fidelidade", Vinicius de Moraes

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

2007-03-06

"O Rato", Agustina Bessa Luís (conto)

A história que vou contar não se passou comigo, mas com um amigo meu que vive na Dinamarca. Não a posso imaginar aqui porque o seu principal personagem, um desratizador profissional, se não estudou numa Universidade que se poderia chamar Andersenrat, assim parecia. Quando eu andava no colégio, havia à porta da "casinha", ou seja, da casa de banho, uma freira velhíssima que compunha terços quebrados e possuía um diploma de cerzideira de meias atribuído na Suíça. São países dum grande rigor e eficiência com os quais não nos podemos comparar. Por isso, Hamlet não parece dinamarquês, ou então deu-lhe para destrambelhar.
O meu amigo, a quem chamarei Klaus, deu com um rato na cozinha. Não esperou para ver se ele estava de passagem, se era emigrante ou simples figura de lenda. Chamou o desratizador. Este era um homem alto, de calças amarelas e que bebia água a toda a hora. Trazia com ele uma garrafinha de água e abria-a com muito cuidado, não fosse sair de lá o génio da lâmpada, ou da garrafa, melhor dito.
A primeirta coisa que fez foi proibir a Klaus a entrada na cozinha enquanto decorresse a operação. Pareciam manobras militares e, como Klaus punha na estereofonia um compacto da Tannhäuser, o acompanhamento dava calafrios.
O desratizador espalhou farinha no chão da cozinha e dois dias depois sabia o peso, a idade e o tamanho do rato. A farinha deixou escritas as impressões das quatro patas e o comprimento da cauda. Pelo comprimento da cauda soube a idade do rato, e assim por diante.
Há quem se impressione com a cauda dos ratos, por ser pelada e parecer um verme, uma espécie de parasita. Outros não gostam das orelhas, não sei porquê, decerto pelo tom róseo e sem penugem. Havia um domador de leões que tinha medo dos ratos; mesmo enjaulados faziam-no estremecer. E, no entanto, os seus quatro leões, pachorrentos, é bem verdade, obedeciam às suas ordens e temiam-no.
O rato era digno do seu inimigo. Parecia ter frequentado também um curso de tropas especiais e conhecia todos os sons e todos os cheiros da cozinha. Conhecia o pingar da torneira no lava-loiça, o leve e picante cheiro duma casca de cebola e o bolor do queijo, que o punha doido. Porém, não se aproximava da ratoeira senão até ao milímetro fatal. Voltava para trás, todo empoado de branca farinha como um pierrot, e cada vez mais o seu coeficiente de inteligência crescia. E o do desratizador, assim, assim.
- Pode crer - disse ele a Klaus - que um rato sabe da sua cozinha numa hora o que você não sabe em trinta anos. Sabe o que guarda nos armários, o que deve escolher e desprezar; sabe onde estão as tábuas podres, os esfregões usados, o sabão seco, os cotos de velas que, quando tem fome, não desdenha comer. Comer e não saborear. Para saborear há coisas mais suculentas. Óleos, manteigas, toucinhos, certos papéis, algum recheio de almofadas e (vejam bem!) canos de borracha. Um rato pode viver um ano numa cozinha e só percebermos que ele anda lá quando o cano da água de lavar a loiça se rompe e provoca uma inundação. Foi o rato que lhe abriu um buraco para aspirar e embriagar-se com os cheiros dos restos, pequenas ervilhas, gorduras e uma ou outra casca de queijo emental, ou suíço, ou gouda, que se pegou ao ditoso cano.
O desratizador, passadas duas semanas, disse:
- É um rato que tem uma dieta. Pode ser mais velho do que eu pensava, porque mantém a linha e agilidade. Come muitos cereais e não prova o açúcar.
- Talvez pense que é veneno - disse Klaus, muito desanimado. Continuava a estar privado da cozinha e até saía para tomar o pequeno almoço na pastelaria. Trazia para casa croissants e fiambre e pãezinhos doces e resistia a reparti-los com o rato. Começava a antipatizar com o desratizador.
Um rato não pensa, não precisa de pensar. Faz melhor que isso, como todo o predador. Um predador usa os sinais que a natureza lhe manda de todos os lados, e um rato da cidade, além da natureza, tem uma rede de informações prodigiosa. Tudo vibra, range, brilha, escorre, tanto as pessoas como os objectos fazem variadíssimos ruídos, cheiram de toda a maneira e, sobretudo, avisam da sua presença. O rato sabe logo se a pessoa é aleijada, se usa bengala, se sofre da bexiga, se usa sapatos ou chinelos. Sabe que onde se ouve música não há muito a temer. A música abafa a caminhada do predador, assim como as grandes famílias são mais seguras para ele. Quando nós jantávamos todos vivos à volta da mesa, a falar alto e a minha mãe a dar ordens e contra-ordens à criada de sala, havia um ratinho que se pendurava no galheteiro que estava em cima do aparador e olhava para nós como se estivesse no teatro. Parecia deliciado. E decerto se sentia em segurança, dado que o calor das discussões lhe transmitia ondas de comovida festa de família. Sabia que ninguém estava zangado e não ia acontecer nenhuma loucura como persegui-lo e derrubá-lo de cima do galheteiro.
Mas voltando a Klaus: já tinham passado três semanas e o rato continuava acantonado na cozinha, a cozinha dele, porque era o seu território, com a cesta do seu pão, com o seu papel dos fritos e uma sertã ainda com pequenas barbatanas de peixe frito. Ele gostava de peixe frito. Klaus tinha a certeza de que ele fazia sanduíches de ovo e anchovas. Mostrai-me um rato que goste de anchovas e digo-vos onde está um bom europeu.
Aproximavam-se as férias do Verão e Klaus queria navegar no seu barco que estivera todo o ano no estaleiro, o que lhe custara uma fortuna. Mas dava o dinheiro por bem empregado porque gostava do mar como um rato gosta de queijo. Já não consigo afastar-me do assunto, o que, numa história, às vezes, é indispensável. Klaus convidou a sua ex-mulher a passar uma tarde no barco, aproveitando o primeiro sol de Junho, e esqueceu o rato e o desratizador. Quando voltasse (entretanto fez uma viagem e achou tudo muito mudado, que é o que acontece a quem faz viagens) esperava encontrar tudo resolvido e apenas lhe restava pagar ao desratizador e tomar conta outra vez da cozinha. Mas as coisas não se passaram assim. Nada tinha mudado e o rato continuava a andar por cima da farinha e estava cada vez mais inteligente.
- Que é que eu faço? - disse Klaus. - Estou tão aborrecido que ainda me caso outra vez com a minha ex-mulher, ou vou meter-me no museu dos vikings a contar os pregos dos barcos um por um. Acho que o rato e eu acabamos por nos entender, se você deixar.
- Isto não é possível. - O desratizador não estava em si de tão contrariado. - Eu tenho que fazer o meu serviço. É para isso que me pagam.
- Eu pago-lhe na mesma.
- Mas não me pode pagar se eu não fizer aquilo para que fui chamado. Tenha paciência e espere.
Klaus, como não podia servir-se da cozinha e estava cansado de comer arenque fumado, aceitou um convite da ex-mulher para jantar lá em casa. Primeiro duas vezes por semana, depois todos os dias. Isto deu como resultado reatarem as relações antigas e, de bons amigos que eram, tornaram-se ainda melhores. Já não se lembravam porque se tinham separado; provavelmente eram muito novos quando se casaram e não faziam outra coisa senão encontrar defeitos um no outro. Era um jogo do empurra, e aquilo não parecia nada bem. Mas quando se trata de amor, cada um faz o que quer porque se pensa que o amor, como na guerra, permite tudo. Ora, até o pacto de Genebra estabelece que na guerra nem tudo é permitido. Mas como não há um pacto de Genebra para o amor, cada um faz como entende.
O tempo em que Klaus esperou a morte do rato foi um tempo de razoável felicidade. Ele e a ex-mulher tornaram-se companheiros inseparáveis e até arranjaram emprego na mesma zona da cidade. Aqui tenho que dizer que no Brasil não se diz zona por ser o domínio das prostitutas e gente assim. Mas aqui pode dizer-se zona à vontade, e bicha e veado, que ninguém fica a olhar para nós como se estivéssemos a cometer uma terrível indiscrição.
Entretanto, vou-vos dizer quem era Klaus, o meu amigo. Era arquitecto e tinha saído de Portugal quando da guerra das colónias; era, portanto, um emigrante político. Era um pacifista, como se vê pela história do rato a que chegou a dar um nome e a querer que o desratizador falhasse nos seus intentos. Mas o desratizador até aos domingos ia ver o que se passava na cozinha de Klaus.
- O rato está mais gordo, vê-se pelo rasto que deixa na farinha. E também está mais esperto. Bebe a água da torneira e põe-se debaixo para apanhar a gota que cai de quarenta em quarenta segundos. Às vezes, ele vai inspeccionar o armário das provisões e quarenta segundos depois lá está para receber a gota de água, bem certeira, na boca aberta.
- É um prodígio - disse Klaus. E a ex-mulher repetiu:
- É um verdadeiro prodígio. - Tinha amadurecido e sabia que repetir o que um homem diz é a chave do sucesso no casamento. Agora arranjava-se mais e penteava-se no cabeleireiro, de vez em quando, e punha rolos no cabelo fino, dum loiro esbranquiçado. Klaus lembrou-se: tinha-se separado por causa da cor do cabelo dela. Parecia manteiga fervida. Mas agora não se importava. Falavam muito um com o outro, do rato e doutras coisas. Ela tinha uma graça que Klaus nunca suspeitara.
- Klaus - disse ela (o nome dele era Cláudio Pinto, mas mudara para Klaus) - podíamos ir para a neve, no Inverno.
- Mas neve é o que não falta aqui - disse Klaus, muito surpreendido e assustado porque o tempo das viagens já ia longe. Agora preferia ouvir música e ficar quieto.
- Pois sim. Mas não temos montanhas. A neve sem montanhas não parece neve. Suja-se logo e torna-se em gelo escorregadio. Eu gostava de ver a neve nas montanhas e os pinheiros carregados e os coelhos a aparecer nas tocas num dia de sol.
A ex-mulher estava a ficar muito romântica, e Klaus deu por isso. Expusera-se demais e tinha medo do que podia acontecer. Faltava-lhe a esperteza do rato que sabia parar a tempo, um milímetro antes da ratoeira. Pensando nisso, voltou a casa e espreitou para dentro da cozinha. Ali estava um efeito de neve muito confortável, com toda a ranca farinha espalhada pelo chão. E as patinhas do rato estavam impressas por cima como se fosse uma forma de escrita. Talvez fosse uma forma de escrita, ele era bastante inteligente para isso. Sentiu admiração por ele. "É um rato como deve ser" - pensou.
Isto era um grande elogio. Entretanto, a ex-mulher de Klaus, que tinha dois filhos dum primeiro casamento, juntava dinheiro e dizia:
- É para quando formos velhos. Os velhos precisam de ter dinheiro, senão ninguém quer saber deles.
Toda a gente tinha regalias sociais, havia hospitais para curar as pessoas e outros para convalescer. Mas a ex-mulher continuava a dizer que era preciso ter dinheiro para quando a velhice chegasse. Sentia-se sempre insegura, por mais cartões de crédito que tivesse, e Klaus aborrecia-se com isso. Um dia parou diante da estátua de Kierkegaard, que devia ter sido um homenzinho enfezado, e pensou que ele se parecia com o rato. Não um rato de laboratório mas de cozinha ou, se quiserem, de biblioteca. Como escapara ao casamento, intitulando-se um sedutor cheio de manhas, era duma esperteza de rato. Klaus olhou para ele, no entardecer escuro da cidade, e lembrou-se que ele morrera no mesmo dia em que se lhe acabou o dinheiro.

- Meu bom Soren, és mesmo um tipo com quem se pode contar. Parece que a sobrecasaca não te serve, mas é só porque és meio corcunda e gostas de parecer ainda mais corcunda- A tua sedução está em saberes ser pior do que és. Como o rato da minha cozinha. Acho que vou voltar para lá.
Mas a ex-mulher não deixou. Estava cada vez mais prestável e os filhos dela ajudavam-na a ser prestável. Tratavam Klaus por pai e deram-lhe uma carteira em pele de lagarto pelo Natal. Ele fingiu-se agradecido, mas é preciso muito mais para um homem ficar agradecido. Ia para o fiorde e o vento soprava na água como se fosse derrubá-la. Não se derruba a água, ela não tem pés nem raízes: todavia, sustenta-se como se os tivesse.
Um dia, desratizador encontrou-o na rua e foi falar com ele. Estava entusiasmado, ainda que isso só se percebesse porque o lado esquerdo do bigode tremia. Ele disse:
- Tenho uma boa notícia para si. Estive ontem na sua cozinha e o rato estava morto. Agora já me pode pagar.
- Como morreu? - Klaus sentiu uma dor no estômago e outra na perna direita. As emoções não escolhem lugar. Morreu com veneno ou foi electrocutado?
- Nada disso. E, sabe? Não acasalava, e por isso não trouxe uma fêmea com a ninhada. Eu não diria que era um rato velho, mas talvez fosse. Tinha já os bigodes brancos. De qualquer modo, deu-me que fazer. Há dois anos que estava na sua cozinha e não deixou pedra sobre pedra. Nem um grão de arroz. Tinha uma dieta muito equilibrada, apesar de tudo. Estava manco, talvez uma artrose, talvez isso. É preciso avisar os vizinhos.
Klaus ficou desolado. Tinha casado com a ex-mulher e vivia na casa dela com os filhos dela que pareciam duas morsas e que continuavam a chamar-lhe pai. Não podia imaginar Kierkegaard a viver com duas morsas na mesma casa. Que esperto que ele tinha sido! Andou durante um tempo pensativo e um dia em que, por acaso, viu o desratizador num centro comercial, perguntou-lhe:
- Como é que eu podia comprar um rato?
Ele tirou do bolso uma agenda preta, dessas que têm junto uma máquina de calcular, e folheou-a com profunda atenção:
- Só daqui a três anos é que tenho um rato disponível.
- Como? - disse Klaus, estupefacto.
- Não imagina a quantidade de homens que querem um rato na cozinha. - O desratizador coçou o queixo e disse: - Homens como você, que me chamaram para matar um rato e que foram vítimas das consequências, as consequências, senhor Klaus! É disso que eu vivo e não de matar ratos. É um ofício mal pago e que não dá nem para a água. - Tirou a garrafinha do bolso e bebeu um trago. Tapou-a rapidamente, não fosse sair de lá um génio. E não se sabe o que seriam as consequências.

2007-02-28

"Em todos os jardins", Sophia M. B. Andresen

Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como um beijo.

Então serei o ritmo das paisagens
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.


Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), “Poesia I”, 1944
...

O início

Aqui tem início o que provavelmente será um porto de abrigo.