2007-03-10

"A Peste", Albert Camus (excerto adaptado)

Na manhã do dia 16 de Abril, o doutor Bernard Rieux saiu do seu consultório e tropeçou num rato morto, no meio do patamar. Nesse momento, afastou o bicho sem lhe prestar atenção e desceu a escada. […]
[…] No momento em que o médico entrou, o doente, meio erguido no leito, encostava-se para trás numa tentativa de restabelecer a respiração penosa de velho asmático. A mulher trouxe uma bacia.
- Hem, doutor – disse ele durante a injecção - , eles saem, já viu?
[…] foi mais ou menos por esta época que os nossos concidadãos começaram a inquietar-se com o caso, pois a partir do dia 18 as fábricas e os depósitos apareceram enxameados de centenas de cadáveres de ratos. Em alguns casos, foi necessário acabar de matar os bichos, cuja agonia era demasiado longa. Mas desde os bairros exteriores até ao centro da cidade, por toda a parte onde os nossos concidadãos se reuniam, os ratos esperavam em montes, nos caixotes do lixo ou junto às sarjetas, em longas filas. A imprensa da tarde ocupou-se do caso a partir desse dia e perguntou se a municipalidade se propunha ou não agir e que medidas de urgência tencionava adoptar para proteger os seus munícipes dessa repugnante invasão. A municipalidade não se tinha proposto coisa nenhuma, mas começou por reunir em conselho, para deliberar. […]
Porém, nos dias que se seguiram a situação agravou-se. O número de roedores apanhados ia crescendo e a recolha era cada manhã mais abundante. A partir do quarto dia, os ratos começaram a sair para morrerem em grupos. Das arrecadações das caves, dos esgotos, subiam em longas filas titubeantes, para virem vacilar à luz, girar sobre si mesmos e morrer perto dos seres humanos. À noite, nos corredores ou nas ruelas, ouviam-se distintamente os seus guinchos de agonia. De manhã, nas ruas, encontravam-se junto aos passeios, com uma pequena flor de sangue no focinho pontiagudo, uns inchados e pútridos, outros rígidos e com os bigodes ainda hirtos. Na própria cidade, encontravam-se em pequenos montes, nos patamares e nos pátios. Vinham também morrer isoladamente nos vestíbulos administrativos, nos recreios das escolas, por vezes nos terraços dos cafés. Os nossos cidadãos, estupefactos, encontravam-nos nos locais mais frequentados da cidade. […]
[…] Até então, as pessoas tinham-se apenas queixado de um espectáculo um pouco repugnante. Compreendia-se agora que este fenómeno, de que não se podia ainda avaliar a amplitude nem precisar a origem, tinha qualquer coisa de ameaçador. Só o velho espanhol asmático continuava a esfregar as mãos e a repetir com uma alegria senil: «Eles saem, eles saem.» […]

A morte do porteiro, pode dizer-se, marcou o fim deste período, cheio de sinais desconcertantes, e o início de um outro, relativamente mais difícil, em que a surpresa dos primeiros tempos se transformou, pouco a pouco, em pânico. Os nossos concidadãos – era agora que davam por isso – nunca tinham pensado que a nossa pequena cidade pudesse ser um lugar particularmente designado para que os ratos lá morressem ao sol e que os porteiros lá perecessem de doenças estranhas. […]
[…] No dia seguinte ao da morte do porteiro, grandes brumas cobriram o céu. Chuvas diluvianas e curtas abateram-se sobre a cidade, seguindo-se a estas bátegas breves, um calor de tempestade. […]
Cozia, com efeito, mas nem mais nem menos que uma febre. Toda a cidade tinha febre. […]
[…] Apenas em alguns dias, os casos mortais multiplicaram-se e tornou-se evidente, para aqueles que se preocupavam com esta moléstia curiosa, que se tratava de uma verdadeira epidemia. […]
Rieux reflectia. Pela janela do escritório, olhava a falésia rochosa que se fechava, além, sobre a baía. O céu, embora azul, tinha um reflexo baço, que se esbatia à medida que a tarde avançava.
- É verdade, Castel – respondeu. É quase incrível, mas parece-me bem que é a peste. […]
A palavra «peste» acabava de ser pronunciada pela primeira vez.
...
Este é um romance que vale a pena ler. Albert Camus (Prémio Nobel) não só relata os factos que o título deixa adivinhar como também os sentimentos, muitas vezes contraditórios, que «a peste» provoca nos habitantes da pequena cidade de Orão, que se vê de repente fechada ao exterior por força de um mal desconhecido.

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