2007-04-09

"As formigas", Boris Vian (I)

Chegámos esta manhã e fomos mal recebidos porque na praia não estava ninguém, só uma porção de tipos mortos ou bocados de tipos, tanques e camiões desfeitos. Um pouco de todo o lado apareciam balas, numa destas confusões que não me agradam muito. Saltámos para a água, mas era mais funda do que parecia e escorreguei numa lata de conservas. Um balásio que nos mandaram levou três quartos da cara ao tipo que ia mesmo mesmo atrás de mim, e guardei a lata de conservas como recordação. Meti os bocados da cara no capacete e ofereci-lhos, o tipo foi-se dali para fazer o curativo mas parece que escolheu mau caminho porque se meteu pela água até quase não ter pé, e não acredito que pudesse ver o fundo de forma a não ficar perdido.
Eu sim, corri para onde devia, mas não me livrei de levar com uma perna nas trombas. Apeteceu-me dizer umas boas ao tipo, mas a mina só tinha deixado uns bocados nada fáceis de encaixar; por isso não lhe liguei e lá fui andando.
Dez metros adiante juntei-me a três outros tipos que estavam atrás de um bloco de betão a dar tiros à esquina de um muro que havia mais acima. Suavam muito, estavam num pinto e eu devia estar na mesma, ajoelhei-me e também desatei aos tiros. O tenente apareceu agarrado à cabeça e a escorrer-me encarnado da boca. Vinha com cara de poucos amigos e estendeu-se logo na areia, de boca aberta e braços para a frente. Boa porcaria a areia deve ter ficado. Era dos poucos lugares que ainda se mantinha limpo.
Dali, o nosso barco encalhado começou por ter ar de uma coisa muito estúpida, e depois, quando lhe acertaram duas granadas, nem ar de barco já tinha. Não foi coisa que me caísse bem porque dentro dele ainda havia dois amigos a tentarem levantar-se, para saltarem mais as balas que lhes tinham acertado. Bati no ombro dos três que andavam aos tiros comigo, e disse: «Venham daí, vamos lá.» Claro que os mandei à frente, e foi coisa bem topada porque ao primeiro e ao segundo nem alma se lhes aproveitou com os fogachos que os outros dois nos mandavam, e à minha frente só restava um, pobre rapaz sem sorte nenhuma, pois mal dera cabo do mais bera já o outro arranjava maneira de o matar, antes de eu poder tratar-lhe da saúde.
Aquele par de sacanas tinha uma metralhadora e cartuchos em barda, atrás da esquina do muro. Apontei a metralhadora para o lado oposto, carreguei a fundo naquilo mas tive que parar logo porque me dava cabo dos ouvidos e encravou. Devem-nas regular para não dispararem na direcção errada.
Ali estava-se a bem dizer sossegado. Do alto da praia podia gozar-se o panorama. No mar era um fumo dos diabos e a água dava espirros muito altos. Também se viam os clarões das salvas dos grandes couraçados, e as bombas passavam por cima da minha cabeça com um barulho esquisito e abafado como o som grave de um cilindro, na guita pelo ar fora.
[continua]

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