2007-04-28

"Mais uma noite", Fernando Pinto do Amaral

Mais uma noite, amor. Ao recordar-te
retomo os fins do mundo, a cinza, os dias
manchados de outras lágrimas. Sabias
como eu a cor das sombras, essa arte

que nos engana agora e se reparte
por esquinas e cafés. Já não me guias
os muitos passos vãos, as fantasias
da minha falsa vida.
Vou deixar-te

fugindo-me. Na chuva, sem ninguém,
apenas alguns vultos, o que vem
"e dói não sei porquê" - este deserto
onde te vejo, imagem outra vez,
até de madrugada. O que me fez
sentir o muito longe aqui tão perto?

Fernando Pinto do Amaral, A escada de Jacob

"A meu favor", Alexandre O'Neill

A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer.

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura começa.

Alexandre O'Neill, in No reino da Dinamarca

"As formigas", Boris Vian (XII a XV)

XII

Outra vez aqui. Na cidade, ainda assim, a gente chateava-se menos. Avançamos muito lentamente. Todas as vezes que terminamos os preparativos da artilharia mandamos uma patrulha, e todas as vezes um dos tipos da patrulha volta de sebo limpo por um atirador isolado. Recomeçamos então os mesmos preparativos, mandam-se aviões, deitam tudo abaixo e dois minutos depois os atiradores isolados voltam a dar tiros. Neste momento estão de volta os aviões, conto setenta e dois. Não são lá muito grandes, mas a aldeia também não é. Daqui vêem-se as bombas cair em espiral e fazem um barulho abafado, com bonitas colunas de pó. A gente vai atirar-se ao ataque, mas primeiro é preciso mandar uma patrulha. Diabo de sorte, que já lá estou caído. Temos cerca de quilómetro e meio para fazer a pé, e eu cá não gosto de andar assim tanto, mas nesta guerra nunca pedem a nossa opinião. Amontoamo-nos atrás do entulho das primeiras casas, parece que não resta nenhuma em pé de uma ponta à outra da aldeia. Habitantes parece que também não há muitos, e os que vemos fazem uma cara esquisita se ainda a têm; deviam perceber que não podemos arriscar-nos a perder homens para salvá-los a eles mais às suas casas; a maior parte das vezes casas velhas sem nenhum interesse. De resto é esta a única maneira de se verem livres das que sobram. Em geral compreendem bastante bem o caso, embora alguns pensem que há outros meios… Ao cabo e ao resto é lá com eles, até pode acontecer que tivessem apego às casas, mas com certeza já têm muito menos no estado em que elas estão.
Continuo na patrulha. Mais uma vez sou o de trás, à cautela, e o da frente acaba de cair no buraco de uma bomba cheio de água. Sai de lá com o capacete forrado de sanguessugas. E também traz com ele um grande peixe todo espavorido. No regresso o Mac deu-lhe uma ensinadela, para ele não armar aos cágados; o tipo não gosta nada de chewing-gum.

XIII

Acabo de receber uma carta da Jacqueline, com certeza entregou-a a um tipo qualquer para ir deitá-lá no correio, pois chegou num sobrescrito dos nossos. É uma rapariga esquisita, não haja dúvidas, mas é possível que todas as raparigas tenham ideias pouco vulgares. Desde ontem recuámos um pouco, mas amanhã voltamos a avançar. Sempre as mesmas aldeias completamente arrasadas, até faz neura. Encontrámos um aparelho de rádio novinho em folha. Estão agora a experimentá-lo, mas realmente não sei se é possível substituir uma lâmpada por um coto de vela. Penso que é, porque oiço tocar o Chattanooga; pouco antes de voltar dancei-o com a Jacqueline. Se ainda tiver tempo, creio que vou responder-lhe. Agora é o Spike Jones; também gosto dessa música e bem queria ver isto acabado para comprar uma gravata civil com riscas azuis e amarelas.

XIV

Daqui a bocado partimos. Estamos outra vez perto da frente, e as granadas dá-lhes outra vez para aparecerem. Chove, não faz lá muito frio e o jipe anda bem. vamos descer e continuar a pé.
Parece que já lhes cheira que isto vai acabar. Não sei como é que o vêem, mas cá por mim gostava de safar-me o melhor possível. Ainda há sítios onde a gente apanha uns apertões. Não se pode prever o que nos espera.
Dentro de quinze dias tenho outra licença e já escrevi à Jacqueline para esperar por mim. Talvez seja asneira, pois a gente não deve deixar-se prender.

XV

Continuo de pé em cima da mina. Esta manhã saímos em patrulha e eu ia em último lugar, como é costume; todos lhe passaram ao lado mas senti o estalido debaixo do pé e parei logo. Só rebentam quando se tira o pé. Joguei aos outros o que trazia nos bolsos e disse-lhes para se irem embora. Estou sozinho. Devia esperar que voltassem, mas disse-lhes para não virem; e podia experimentar atirar-me para o chão, de barriga para baixo, mas tenho um verdadeiro horror a viver sem pernas. Só fiquei com o meu caderno e o lápis. Vou atirá-los para longe, antes de mudar de perna, e não posso deixar de fazê-lo porque estou farto da guerra e já começo a sentir um formigueiro.

2007-04-24

"As formigas", Boris Vian (IX, X e XI)

IX

Estamos cercados. Os nossos tanques regressaram e o resto não se aguentou no balanço. Não pude combater a sério por causa do pé, mas encorajei a malta. Foi muito excitante. Da janela via-se bem; os pára-quedistas que chegaram ontem, como eles se mexiam! Agora tenho um cachecol amarelo e verde sobre fundo castanho, que é feito da seda de um pára-quedas e fica muito bem com a cor da minha barba, mas amanhã vou rapá-la por causa da licença de convalescente. Tão excitado aquilo me pôs que arrumei com um tijolo à cabeça do Johnny numa altura em que ele não acertou, e agora dois outros dentes me estão a faltar. Esta guerra é muito bera para os dentes.

X

O hábito enfraquece as sensações. Eu disse isto no Centro da Cruz Vermelha, a dançar com a Huguette – arranjam-me cada nome – e ela respondeu: «És um herói», mas nem tempo tive de encontrar uma resposta fina porque o Mac me bateu no ombro e tive de largá-la. As outras falavam mal e a orquestra tocava muito muito depressa. O pé ainda me incomodava um pouco, mas dentro de quinze dias acabou-se, há que regressar. Engatei uma rapariga das nossas, mas o pano da farda é muito grosso e também nos enfraquece as sensações. Há muitas raparigas por aqui, e lá vão compreendendo aquilo que se lhes diz, o que me põe corado, mas com elas não consegue fazer-se grande coisa. Saí e encontrei muitas outras, de um género totalmente diferente, mais compreensivas mas quinhentos francos o mínimo, e assim mesmo porque fui ferido. Que engraçado terem sotaque alemão.
Depois perdi-me do Mac e bebi muito conhaque. Esta manhã dói-me horrivelmente a cabeça no sítio onde apanhei com o M.P. Estou teso, pois caí na asneira de comprar cigarros franceses a um oficial inglês, senti-os quando iam a passar. Acabo de deitá-los fora, são um pavor, razão tinha o inglês em querer livrar-se deles.

XI

Quando a gente sai dos armazéns da Cruz Vermelha com uma caixa de cartão para pôr os cigarros, sabão, doces e jornais, na rua olham para nós não sei porquê, pois com certeza vendem caro o conhaque e também podem comprar aquilo, para mais as mulheres deles não são de graça. Já tenho o pé quase bem curado. Não acredito que vá ficar muito mais tempo aqui. Vendi os cigarros para poder dar umas curvas e depois cravei o Mac, mas não é fácil ele escorregar. Começo a sentir-me chateado. Logo à noite vou ao cinema com a Jacqueline, encontrei a tipa ontem, no clube, mas acho que não é lá muito esperta porque me afasta sempre a mão e não se mexe nadinha quando dança. Estes soldados de cá metem-me nojo, são muito enxovalhados e não há dois com farda igual. Enfim, só me resta esperar por logo à noite.

2007-04-18

"As formigas", Boris Vian (VI, VII e VIII)

VI

Esta manhã aconteceu-me uma aventura tramada. Estava eu no palheiro, atrás da barraca, e preparava-me para fazer uma partida àqueles dois tipos que se vêem muito bem com o binóculo e tentam acertar em nós. Estava eu a esconder um morteiro de 81 num carrinho de bebé, o Johnny ia mascarar-se de camponesa para o empurrar, e o diabo do morteiro começa por cair-me em cima do pé; coisas destas não param agora de estar sempre a acontecer-me. O tiro saiu e eu para ali assim, caído e agarrado ao pé, quando uma dessas geringonças com engrenagens foi explodir no segundo andar, mesmo em cima do piano do capitão e na altura em que ele lá estava a tocar Jadá. Fez um barulho infernal e estilhaçou o piano. O que mais me dana é o capitão não ter sofrido nada, realmente nada que o impedisse de continuar a martelar com toda a força. A sorte foi logo a seguir ter chegado uma de 88 ao quarto. O capitão não viu que o fumo do meu morteiro é que tinha facilitado o alvo, e ainda por cima me agradeceu dizendo que eu lhe salvara a vida, pois fora obrigado a descer cá abaixo. Não é assunto que agora me interesse, pois o pior de tudo são os meus dois dentes partidos mais a garrafeira dele, que estava toda debaixo do piano.
O cerco é cada vez maior, isto cai-nos em cima sem dar descanso. Felizmente, o tempo começa a desanuviar, em doze horas só estão a chover nove e daqui a um mês já podemos contar com reforços de avião. Temos víveres que dão para três dias.

VII

Os aviões começam a mandar-nos umas coisas que caem de pára-quedas. Ao abrir a primeira tive uma decepção, lá dentro só havia uma data de remédios. Troquei-os no médico por duas barras de chocolate com nozes, coisa da boa, nada que se pareça com a trampa das rações, e meio flask de conhaque; mas depois ele desforrou-se a amanhar-me o pé esborrachado. Tive de devolver o conhaque, de outro modo a esta hora já só tinha um pé. Lá em cima aquilo começa outra vez a roncar, depois há uma aberta pequena e mandam mais pára-quedas, mas agora são tipos, segundo me parece.

VIII

Eram mesmo tipos. Dois muito pândegos. Parece que levaram todo o caminho a fazer golpes de judo um ao outro, a arrear castanhas, a pintar a manta. Saltaram ao mesmo tempo e puseram-se a brincar, cortavam à faca as cordas dos pára-quedas. Por má sorte o vento separou-os e viram-se obrigados a continuar com tiros de espingarda. Poucas vezes vi atiradores tão bons. Mas depois a gente teve de enterrá-los porque caíram de alto demais.

2007-04-14

"As formigas", Boris Vian (IV e V)

IV

Eu bem dizia que andavam a tramar alguma. Chegaram quatro tanques bastante perto de nós. Vi o primeiro a sair e pouco depois parar. Uma granada tinha desfeito uma das lagartas, que de repente se desenrolou com um pavoroso ruído de sucata, mas o seu canhão é que não avariou por tão pouco. A gente agarrou num lança-chamas; nesta coisa, aqui, a maçada é ter-se de rasgar a capota dos tanques e só depois o lança-chamas ser posto a funcionar; sem isso o tanque rebenta (como uma castanha) e os tipos que vão lá estão fritos. Eram três a rasgar a capota com uma serra de metais, mas como estavam a chegar mais dois tanques fomos obrigados a dar cabo deste, mesmo sem o rasgar. O segundo também se foi à viola e o terceiro deu meia volta, só a fingir porque vinha de marcha-atrás. Aquela coisa de ele desatar a dar tiros aos tipos que vinham atrás tinha-nos espantado um pouco. Deu-nos uma prenda de anos que foi doze granadas de 88; e se quisermos novamente a casa vamos ter de voltar a construí-la, embora seja mais rápido tomar conta de outra. Acabámos por afastar o terceiro tanque com uma bazuca carregada de pós de espirrar; os que lá iam deram uma cabeçada tão forte na blindagem, que só saíram cadáveres de dentro. Apenas o condutor vivia um pouco, mas entalou a cabeça no volante e não conseguiu tirá-la, por isso achámos preferível cortar a cabeça do tipo em vez de dar cabo do tanque, que ainda estava bom. Depois chegaram motociclistas com espingardas-metralhadoras, vinham atrás a fazer um chiqueiro dos diabos, mas resolvemos o caso com uma velha ceifeira-atadeira. Entretanto, ainda nos caíram na cabeça algumas bombas e mesmo um avião que o nosso D. C. A. tinha abatido sem querer, pois em princípio só atirava aos tanques. Na nossa companhia perdemos o Simon, o Morton, o Buck e o P.C. Ficámos com os outros e um braço do Slim.

V

Sempre cercados. Agora há dois dias que não pára de chover. No telhado só há telha sim, telha não, mas as gotas caem onde devem cair e realmente não estamos molhados. Não há maneira de conseguir saber-se quanto tempo isto ainda vai durar. Patrulhas que nunca mais acabam, mas sem treino é bastante difícil a gente olhar pelo periscópio e é cansativo aguentar mais de um quarto de hora com lama por cima da cabeça. Ontem encontrámos outra patrulha. A gente não sabia se era dos nossos ou daqueles outros, ali da frente, mas debaixo de lama nada se arriscava em atirar, porque era impossível fazer qualquer espécie de dano; por isso as espingardas desataram logo aos tiros. Já tentámos tudo para acabar com esta lama. Deitámos-lhe gasolina em cima; largando fogo ela seca mas depois, se a pisamos, ficam os pés assados. A única solução será cavar até à terra firme, mas ainda é mais difícil patrulhar em terra firme do que na lama. A gente vai acabar, mais ou menos, por habituar-se. O aborrecido é ter aparecido em tanta quantidade que até faz ondas. De momento vá lá, só chega à trincheira, mas de um instante para o outro vai subir de novo até ao primeiro andar, e que desagradável há-de ser.

2007-04-11

"As formigas", Boris Vian (II e III)

II

Depois entrámos pela costa adentro e experimentámos pôr em prática os conselhos dos instrutores e as coisas aprendidas nas manobras. O jipe do Mike chegou nessa mesma altura. Quem vinha a guiar era o Fred, e o Mike estava partido ao meio; tinham-no encontrado metido com um arame-farpado. Andamos a proteger com chapa de aço a dianteira das outras carripanas, porque está quente demais para se andar de pára-brisas levantado. Isto aqui ainda chia por todos os lados e fazemos patrulha atrás de patrulha. Parece que avançámos mais depressa do que devíamos, e é difícil manter contacto com o reabastecimento. Esta manhã lixaram-nos nove tanques, pelo menos, e aconteceu uma estranha história: um foguetão arrastou uma bazuca e o tipo foi agarrado àquilo, preso atrás pela bandoleira. Ainda se deixou levantar quarenta metros antes de descer de pára-quedas. Julgo que vamos ser obrigados a pedir reforços, porque ainda agora ouvi uma coisa parecida com o ruído de uma grande tesoura de podar, julgo que nos cortaram a retaguarda…

III

… Faz-me lembrar há seis meses, quando acabavam de cortar-nos a retaguarda. Devemos estar completamente cercados, e o Verão já acabou. Por sorte ainda há comida e munições. Temos de fazer rendições de duas em duas horas, e é cansativo estar de sentinela. Os outros tiram as fardas aos nossos, quando fazem prisioneiros, dá-lhes para se vestirem como nós e temos que desconfiar. Com tudo isto deixou de haver luz eléctrica e apanhamos com granadas que vêm de todos os lados ao mesmo tempo. Para já, tentamos restabelecer contacto com a retaguarda; têm de mandar-nos aviões, pois os cigarros começam a faltar. Lá fora há barulho, qualquer coisa andará na forja, a gente nem temos tempo de tirar o capacete.

2007-04-10

"As formigas", Boris Vian (I.1.)

Chegou o capitão. Só nos restavam onze. Disse que não eram lá muitos mas mesmo assim a gente ia desenrascar-se. Mais tarde enviaram os que faltavam. Para já, mandou-nos cavar buracos. São para dormir, pensava eu, mas afinal não eram, tivemos de saltar para dentro deles e continuar a atirar.
Por sorte aquilo ia aliviando. Começavam a desembarcar tipos às carradas, mas os peixes metiam-se entre as pernas deles, para se vingarem da barafunda, e a maior parte malhava na água e levantavam-se a bufar que era um caso sério. Mas alguns não se levantavam e afastavam-se a flutuar nas ondas, o capitão disse para avançarmos atrás do tanque e neutralizamos o ninho de metralhadoras que voltava a dar sinal.
Fomos atrás do tanque. Eu em último lugar porque não me fio lá muito no travão daquelas geringonças. Seja como for, é mais cómodo andar atrás do tanque porque não precisamos de nos embaraçar nos arames-farpados e os postes caem sozinhos. Eu não gostava era do modo como esborrachavam os cadáveres, com o diabo de um ruído que só recordá-lo nos deixa doentes – mas na altura nos parece original. Passados três minutos o tanque ia ao ar por causa de uma mina, e começou a arder. Dois tipos não conseguiram sair, o terceiro conseguiu mas ficou com um pé dentro do tanque e nem sei se chegou a dar por ela antes de morrer. Bem, duas granadas já tinham acertado no ninho das metralhadoras, partido os seus ovos mais os fulanos que lá estavam. Os que desembarcavam iam encontrado aquilo melhor, mas foi a vez de uma bateria antitanque desatar aos fogachos e vinte, pelo menos, malharam na água. Eu cá deitei-me de barriga para baixo. Do meu lugar só era preciso inclinar-me um pouco para poder vê-los aos tiros. A carcaça do tanque incendiado protegia-me um pouco, e lá consegui fazer boa pontaria. O artilheiro caiu a torcer-se todo, com certeza acertei baixo demais, mas não conseguia dar cabo dele porque primeiro era preciso mandar os outros três à viola. Foi difícil, por sorte o barulho do tanque incendiado não me deixava ouvi-lo berrar – e também fui azelha a matar o terceiro. Mas aquilo continuava a rebentar e deitar fumo por todos os lados. Dei uma boa esfregadela aos olhos porque o suor não deixava ver bem, e o capitão voltou. Só conseguia utilizar o braço esquerdo. «Podes ligar-me o braço direito ao corpo, muito apertado?» Respondi que sim e comecei a enrodilhá-lo com ligaduras até ao momento em que saltou a pés juntos do chão e me caiu em cima, pois atrás dele rebentara uma granada. Ficou instantaneamente teso como um carapau, parece que é assim quando se morre muito cansado, pelo menos foi mais fácil tirá-lo de cima de mim. Com certeza adormeci, e quando acordei o barulho já estava mais longe e um desses tipos que usam cruzes vermelhas à volta do capacete metia-me café pela goela abaixo.

2007-04-09

"As formigas", Boris Vian (I)

Chegámos esta manhã e fomos mal recebidos porque na praia não estava ninguém, só uma porção de tipos mortos ou bocados de tipos, tanques e camiões desfeitos. Um pouco de todo o lado apareciam balas, numa destas confusões que não me agradam muito. Saltámos para a água, mas era mais funda do que parecia e escorreguei numa lata de conservas. Um balásio que nos mandaram levou três quartos da cara ao tipo que ia mesmo mesmo atrás de mim, e guardei a lata de conservas como recordação. Meti os bocados da cara no capacete e ofereci-lhos, o tipo foi-se dali para fazer o curativo mas parece que escolheu mau caminho porque se meteu pela água até quase não ter pé, e não acredito que pudesse ver o fundo de forma a não ficar perdido.
Eu sim, corri para onde devia, mas não me livrei de levar com uma perna nas trombas. Apeteceu-me dizer umas boas ao tipo, mas a mina só tinha deixado uns bocados nada fáceis de encaixar; por isso não lhe liguei e lá fui andando.
Dez metros adiante juntei-me a três outros tipos que estavam atrás de um bloco de betão a dar tiros à esquina de um muro que havia mais acima. Suavam muito, estavam num pinto e eu devia estar na mesma, ajoelhei-me e também desatei aos tiros. O tenente apareceu agarrado à cabeça e a escorrer-me encarnado da boca. Vinha com cara de poucos amigos e estendeu-se logo na areia, de boca aberta e braços para a frente. Boa porcaria a areia deve ter ficado. Era dos poucos lugares que ainda se mantinha limpo.
Dali, o nosso barco encalhado começou por ter ar de uma coisa muito estúpida, e depois, quando lhe acertaram duas granadas, nem ar de barco já tinha. Não foi coisa que me caísse bem porque dentro dele ainda havia dois amigos a tentarem levantar-se, para saltarem mais as balas que lhes tinham acertado. Bati no ombro dos três que andavam aos tiros comigo, e disse: «Venham daí, vamos lá.» Claro que os mandei à frente, e foi coisa bem topada porque ao primeiro e ao segundo nem alma se lhes aproveitou com os fogachos que os outros dois nos mandavam, e à minha frente só restava um, pobre rapaz sem sorte nenhuma, pois mal dera cabo do mais bera já o outro arranjava maneira de o matar, antes de eu poder tratar-lhe da saúde.
Aquele par de sacanas tinha uma metralhadora e cartuchos em barda, atrás da esquina do muro. Apontei a metralhadora para o lado oposto, carreguei a fundo naquilo mas tive que parar logo porque me dava cabo dos ouvidos e encravou. Devem-nas regular para não dispararem na direcção errada.
Ali estava-se a bem dizer sossegado. Do alto da praia podia gozar-se o panorama. No mar era um fumo dos diabos e a água dava espirros muito altos. Também se viam os clarões das salvas dos grandes couraçados, e as bombas passavam por cima da minha cabeça com um barulho esquisito e abafado como o som grave de um cilindro, na guita pelo ar fora.
[continua]

2007-04-01

"A lentidão", Milan Kundera (excerto)

Sentimos vontade de passar o resto da tarde e a noite num solar. Em França, muitos deles estão transformados em hotéis: um quadrado de verdura perdido numa extensão de fealdade sem verdura; um pequeno trecho de áleas, de árvores, de pássaros no meio de uma imensa rede de estradas. Estou ao volante e, pelo retrovisor, observo um automóvel que vem atrás de mim. A luzinha da esquerda pisca e todo o automóvel emite ondas de impaciência. O condutor espera o ensejo de me ultrapassar; espreita esse momento como uma ave de rapina espreita um pardal.
Véra, a minha mulher, diz-me: «A cada cinquenta minutos morre um homem nas estradas de França. Olha para eles, para estes doidos todos que correm à nossa volta. São os mesmos que sabem mostrar-se de uma prudência absolutamente extraordinária quando vêem assaltar uma velha na rua, mesmo diante dos olhos. Como é que podem não ter medo quando estão ao volante?»
Que responde? Talvez o seguinte: o homem inclinado para a frente na sua motorizada só pode concentrar-se no segundo presente do seu voo; agarra-se a um fragmento do tempo cortado tanto do passado como do futuro; é arrancado à continuidade do tempo; está fora do tempo; por outras palavras, está num estado de êxtase; nesse estado nada sabe da sua idade, nada da mulher, nada dos filhos, nada das suas preocupações e, portanto, não tem medo, porque a fonte do medo está no futuro, e quem se liberta do futuro nada tem a temer.
A velocidade é a forma de êxtase com que a revolução técnica presenteou o homem. Ao contrário do motociclista, quem corre a pé continua presente no seu corpo, obrigado ininterruptamente a pensar nas suas bolhas, no seu ofegar; quando corre sente o seu peso, a sua idade, mais consciente do que nunca de si próprio e do tempo da sua vida. Tudo muda quando o homem delega a faculdade da velocidade numa máquina: a partir de então, o seu próprio corpo sai do jogo e ele entrega-se a uma velocidade que é incorpórea, imaterial, velocidade pura, velocidade em si mesma, velocidade êxtase.
Curiosa aliança: a fria impessoalidade da técnica e as chamas do êxtase. Estou a lembrar-me dessa americana que, há trinta anos, expressão severa e entusiástica, qual apparatchik do erotismo, me deu uma aula (glacialmente teórica) sobre a libertação sexual; a palavra que se repetia mais vezes no seu discurso era a palavra orgasmo; contei: quarenta e três vezes. O culto do orgasmo: o utilitarismo puritano projectado na vida sexual; a eficácia contra a ociosidade; a redução do coito a um obstáculo que se deve ultrapassar o mais depressa possível para se chegar a uma explosão extática, único verdadeiro alvo do amor e do universo.
Porque terá desaparecido o prazer da lentidão? Ah, onde estão os deambulantes de outrora? Onde estão esses heróis indolentes das canções populares, esses vagabundos que preguiçam de moinho em moinho e dormem ao relento? Terão desaparecido com os caminhos campestres, com os prados e as clareiras, com a natureza? Há um provérbio checo que descreve a sua ociosidade por meio de uma metáfora: contemplam as janelas de Deus. Quem contempla as janelas de Deus não se aborrece; é feliz. No nosso mundo, a ociosidade transformou-se em desocupação, o que é uma coisa muitíssimo diferente: o desocupado sente-se frustrado, aborrece-se, procura constantemente o movimento que lhe faz falta.
Olho para o retrovisor: sempre o mesmo automóvel que não consegue ultrapassar-me por causa da circulação em sentido contrário. Ao lado do condutor, está sentada uma mulher; porque é que o homem não lhe conta alguma coisa engraçada? Porque não lhe põe a palma da mão no joelho? Em vez disso, amaldiçoa o automobilista que, à sua frente, não vai suficientemente depressa, e também a mulher não pensa em tocar com a mão o condutor, conduz mentalmente ao mesmo tempo que ele e tal como ele amaldiçoa-me.
E eu penso nessa outra viagem de Paris para um solar no campo, que teve lugar há mais de duzentos anos, na viagem da Senhora de T. e do jovem cavaleiro que a acompanhava. É a primeira vez que estão tão perto um do outro, e a indizível atmosfera sensual que os envolve nasce justamente da lentidão do ritmo: balouçados pelo movimento da carruagem, os dois corpos tocam-se, primeiro sem o saberem, depois sabendo-o, e a história principia.