2007-03-29

"A meu favor", Alexandre O'Neill

A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer.

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.

2007-03-24

"Porque", Sophia M. B. Andresen

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina caiada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

2007-03-21

"Nas tuas mãos", Inês Pedrosa (excerto)

"O amor não tem portas que possamos abrir e fechar, nem passagens secretas para um sótão onde possamos fazer férias dele. Toma conta de tudo em nós, envolve-nos como um lençol de tédio, sedoso, infindo. Ninguém fala deste tédio sublime, tão contrário à acção e à eficácia, imóvel inimigo do progresso do mundo. Só no trono do sonho, iluminado e funesto, o amor interessa. Prolongada, a vida torna-se demasiado curta e o amor ganha o ritmo da chuva que bate leve, levemente.
Habituámo-nos a tratar os amores como electrodomésticos: quando se escangalham, vamos ao supermercado comprar um novo, igualzinho ao que o outro era. Consertar? Não compensa: o arranjo sai caro, além de que nunca se sabe muito bem onde procurar a peça que falta. Substituímos a eternidade pela repetição, e o mundo começou a tornar-se monótono como uma lição de solfejo. Tememos a maior das vertigens, que é a da duração. Mas no fim de cada sucesso há um cemitério como o de Julieta e Romeu, apenas com a diferença da aura, que é afinal tudo. As pessoas morrem cada vez mais velhas e cansadas de correr, e os seus cadáveres tensos soçobram de ridículo sobre a terra das suas efémeras conquistas."

2007-03-12

"O Amor", Nuno Júdice

Deus – talvez esteja aqui, neste
pedaço de mim e de ti, ou naquilo que,
de ti, em mim ficou. Está nos teus
lábios, na tua voz, nos teus olhos,
e talvez ande por entre os teus cabelos,
ou nesses fios abstractos que desfolho,
com os dedos da memória, quando os
evoco.

Existe: é o que sei quando
me lembro de ti. Uma relação pode durar
o que se quiser; será, no entanto, essa
impressão divina que faz a sua permanência? Ou
impõe-se devagar, como as coisas a que o
tempo nos habitua, sem se dar por isso, com
a pressão subtil da vida?

Um deus não precisa de tempo para
existir: nós, sim. E o tempo corre por entre
estas ausências, mete-se no próprio
instante em que estamos juntos, foge
por entre as palavras que trocamos, eu
e tu, para que um e outro as levemos
connosco, e com elas o que somos,
a ânsia efémera dos corpos, o
mais fundo desejo das almas.

Aqui, um deus não vive sozinho,
quando o amor nos junta. Desce dos confins
da eternidade, abandona o mais remoto dos
infinitos, e senta-se aos pés da cama, como
um cão, ouvindo a música da noite. Um
deus só existe enquanto o dia não chega; por
isso adiamos a madrugada, para que não
nos abandone, como se um deus
não pudesse existir para lá do amor, ou
o amor não se pudesse fazer sem um deus.

2007-03-11

"Ele e Ela", Ramalho Ortigão (conto)

«A Júlio César Machado
Meu velho amigo:
- Aqui tens a história que ontem me contou, ao separarmo-nos de ti depois de jantarmos juntos, aquele sujeito que tu conheces.

* * *

Eu tinha chegado de um porto de França em companhia de uma alemã, que entrevira em Paris, e com quem me encontrei depois a bordo do paquete que tinha de nos trazer ao Tejo. Era uma senhora de maneiras muito graves e de fisionomia perfeitamente distinta, sincera e despresumida, como quasi toda a gente dessa bela raça germânica, que floresce em todos os climas como na sua pátria, e aceita toda a convivência como a da sua família. Desembarcámos no Terreiro do Paço. Ela vinha tão abatida e alquebrada pelos efeitos de uma viagem tempestuosa no grosso mar da Gasconha e da Mancha, que eu determinei-me, contra os usos do país a que me recolhia, a oferecer-lhe o meu braço para passearmos por um momento à réstea vivificadora do sol de Lisboa no mês de Janeiro. Soube então que a minha simpática dama se encontrava só na capital, e tinha de partir para o Porto, assim como eu, no dia imediato. Falámos por algum tempo, ela das suas saudades, eu das minhas recordações, até que a acompanhei numa carruagem ao hotel de Bragança, onde ficámos de reunir-nos na manhã seguinte, para seguir no caminho de ferro para a cidade das camélias. À hora aprazada fui encontrar-me efectivamente com ela e achei-a pronta para partir, radiante de saúde, vestida com um trajo de primavera, tendo um ramo de flores junto do rolo do seu édredon, e mostrando-se maravilhada da suave brandura do clima e da engenhosa convenção que levava os habitantes a usarem paletot, com o fim de fazerem acreditar uns aos outros e a quem viesse de fora que também por cá se tinha inverno. Saímos a pé pelo braço um do outro, e fomos almoçar a um café, fazendo horas para chegar a Santa Apolónia a tempo de entrar no trem e partir. Achámo-nos no vagão, acompanhados unicamente de um respeitável ancião, o sr. S. M., que lia filosoficamente um número do Diário de Notícias no canto do compartimento oposto àquele em que nós ficámos um defronte do outro. Estava com efeito uma bela e donosa manhã sem calor nem frio, sem nuvens no céu, sem lama na terra e sem pó no ar. De um lado a frescura das laranjeiras e o reluzente viço das hortas que bordam a estrada até o Carregado, e do outro o límpido cristal do Tejo em plena majestade iam-nos acompanhando como um sorriso e um afago da natureza em hora de bom humor. A minha companheira de viagem tinha remoçado cinco anos com este brando acolhimento do amorável país do seu exílio. Estava buliçosa como um estudantinho, tinha desemolhado o seu ramalhete à força de o respirar com frenesi, até deixar ver toda a alvura dos seus pequeninos dentes com a infantil alegria de uma felicidade inteiramente desanuviada, e era muito bonita, assim contente e alegre. Pelas quatro horas da tarde estávamos perto de Aveiro e principiava a desenrolar-se aos nossos olhos a esplêndida paisagem do norte de Portugal. As campinas estavam virentes e viçosas como em plena primavera, o sol inclinava-se para o ocaso entre uns ténues vapores de opala e de ouro, respirava-se a brisa fragrante das ondas e havia no ar como um fluido de melancolia e de saudade. Era a plácida morbidez de uma tela de Correggio. A jovem alemã, que eu tinha defronte de mim, havia tirado o chapéu e recostado para trás a sua bela cabeça, aureolada por uma espécie de vaga irradiação proveniente do azul dos seus olhos e da expressão dos seus lábios arqueados num sorriso triste como o dos sonhadores, dos namorados e dos poetas. Eu atirei fora um charuto que ela me permitira acender, e preguntei-lhe como lhe parecia a paisagem que íamos vendo. - Ideal murmurou ela, quasi num suspiro. Este laconismo deixou-me entender que estava com uma verdadeira apreciadora do belo, uma dessas criaturas privilegiadas em quem a contemplação dos grandes espectáculos da natureza entumece o coração e supita a palavra fazendo bailar as lágrimas nos olhos. Entendi que não devia perturbar o seu pensamento, a sua ilusão talvez, ou por ventura o seu êxtase, e pus-me a olhar silenciosamente para ela. Ao cabo porém de meia hora não pude resistir à tentação de lhe dizer: - Que horas estas para dois entes que se amassem! - É verdade, confirmou ela. - Como deve ser bom, nestes momentos em que a saudade vaga e indefinida nos inunda como um banho de recordações, de esperanças e de afectos, ter junto de nós um honrado e leal coração que nos entenda e nos ame, e poder a gente casar ternamente com o hino do crepúsculo, o hino da sua alma! Dá-me licença que a ame... Ela fitou-me com um olhar penetrante. - ... por cinco minutos? terminei eu - ou por um quarto de hora?... daqui até se pôr o sol? No fim desse prazo recebe cada um os protestos que adiantou, retira as juras que fez, e fica senhor de si como dantes. É como quem joga a tentos. - Assim, pode ser, disse-me ela rindo, mas verá que se aborrece antes de chegar ao meio da partida... - Porquê? - Porque não faz uma vasa. - Quem sabe? Conforme o lado para que ficarem os trunfos. - Demos então as cartas. - Eu principio. Conto trinta anos de idade, sou pobre e tenho o coração ocupado, mas deu-me Deus um génio apaixonado. . . sincero! Entendo eu que uns dedos fininhos, cor-de-rosa, elegantemente tratados e perfumados são feitos para receber de quando em quando um beijo; que um olhar inteligente e suave deve descer ao fundo da nossa alma, se nós temos uma alma pura, e dessedentar-se nela como uma pomba em um lago; que a elegância, o espírito e a educação de uma mulher amável devem em todo o tempo receber o culto da admiração e do reconhecimento de um homem de bem, porque é certamente para os homens de bem que Deus permitiu a amabilidade às mulheres honestas... - Mas é amizade o que me está dizendo e o que eu mais prezo! E a única pessoa que conheço em Portugal, e já ninguém poderá agora evitar que seja o meu primeiro amigo... Vou-lhe fazer também as minhas confidências. Tenho contraído grandes encargos de coração. Acredita que seja possível amar-se por cartas muito tempo? - O amor em cartas, objectei-lhe eu, é como um jantar de que não nos oferecem senão a lista. Nada obsta a que seja o mais sumptuoso, mas não é por certo o mais nutriente ... No entanto como em tais banquetes dizem que é a imaginação quem prepara as iguarias mais delicadas... - Eu creio que sou amada... - Por alguém que está longe! a quem escreveu esta manhã uma carta de consolação, de resignação e de esperança... uma carta que dentro de oito dias o há-de fazer chorar, e que ele há-de trazer por muito tempo junto do coração como uma santa relíquia... E em troca desta carta há-de mandar-lhe outra escrita ardentemente com as lágrimas do coração e com o sangue das veias, a qual, antes e depois de se saber de cor, será lida e relida todos os dias entre a oração da manhã e o piedoso beijo deposto no retrato de sua mãe. Veja que ideal ventura! o prazer de amar sem ter do amor o que há nele mais impertinente e mais prosaico: as imperfeições que a convivência descobre e multiplica! E, depois, dentro de um ou dois anos, o prazer de tornarem a ver-se! Aparecer-lhe mais bela, porque a saudade e a esperança poetizam, melancolizam, tresdobram a beleza; e encontrá-lo mais velho, e portanto mais expressivamente homem e mais expressivamente simpático! tê-lo finalmente ao seu lado... (E, nisto, passei para o lado dela, e sentei-me no mesmo sofá em que ela se achava.) - Ouvi-lo, continuei eu, ouvi-lo falar-lhe da ausência e do futuro comum, pondo-lhe aos pés o seu amor, o seu nome e a sua liberdade! Possa Deus reuni-los cedo e não o matar a ele de felicidade na hora suprema em que a vir, sendo-lhe permitido, em paga do seu amor constante, beijá-la na fronte longamente e inebriar-se com a certeza de ser amado pela mulher mais adoraveImente meiga, mais terna e mais simpática! Chegado a este ponto, e falando-lhe já, insensivelmente, com muito mais veemência e afogo do que se emprega para conversar, peguei-lhe nas pontas dos dedos, levantei a mão que ela tinha caída no regaço e pousei os lábios no debrum da luva. Ela então levantou o cabazinho de viagem, que estava colocado entre nós ambos, segurou-o nos joelhos, desafivelou a correia que lhe segurava a tampa, e dando-me uma laranja que tirou de dentro, disse-me com a gravidade indulgente e bondosa de um enfermeiro ou de um médico: - Prescrevo-lhe o regime refrigerante. - Por Deus, me parece que estava precisando da receita! tornei-lhe eu, pondo-me a rir. E, voltando para o lugar que primeiramente ocupava defronte dela, principiei a descascar a laranja e a morder com apetite nesse fruto, que não era por certo o fruto proibido. - Sim, senhor. ia-me dizendo no entanto a minha graciosa companheira, baralhou bem as cartas e arranjou bom jogo! - Ah! então confessa . . . - Confesso-lhe que sim. - Posso oferecer-lhe da minha dieta? preguntei eu, dando-lhe metade da laranja. Ela separou um gomo. - Quando acabar, podemos continuar. - Continuo imediatamente, cortei eu logo, debruçando-me na portinhola para cuspir uma pevide que tinha nos beiços. Senão quando a corrente do ar cortado pela locomotiva levou-me da cabeça o meu chapéu. Preciso abrir para este objecto perdido um parêntese, de cuja substância Deus me livre que se soubesse! Tinha sido feito em Paris por - Pinaud & Amour - esse bonito chapéu tão flexível, que se meteria dentro de um sobrescrito! Era de casimira azul como a minha jaqueta de viagem, forrado de azul-claro com debrum pespontado de seda preta. O próprio Amour me tinha dito ao vender-mo por vinte francos - Cela vous coiffc à merveille - e eu tinha tido a criminosa fraqueza de o acreditar! Aquele chapéu não era para mim somente um chapéu, era um elmo e um arnês. Não me considerava simplesmente coberto quando o punha, considerava-me também armado. Queres que te confesse a verdade? Eu não me teria nunca atrevido a apertar os dedos da minha alemã, nem a beijar-lhe apaixonadamente a luva, se o não trouxesse na cabeça, e era realmente muito mais com o talento dos srs. Pinaud & Arnour, do que com o meu próprio, que eu contava para me fazer passar junto dela por um homem de espírito ! Os cabelos despenteados pelo vento tinham-me caído para cima dos olhos; compreendi que estava ridículo, não podendo esconder este ar sumamente tolo de todo o homem a quem de repente desaparece o chapéu na asa de um tufão. Ela ria às gargalhadas, as quais me caíam na cabeça... na cabeça não - pelas costas abaixo! - como torrentes de água nevada. O sr. S. M., de quem confesso que me tinha completamente esquecido, e que continuava sempre a sua viagem no nosso compartimento, apiedou-se de mim, e, lançando generosamente a mão à rede da carruagem, baixou nos seus braços uma caixa de chapéu do tamanho de um gasómetro, e disse-me assim: - Tenho aqui com que lhe valer!... Entendi que rabearia um castor inteiro para fora daquela toca ambulante, e ia conter com um gesto a benevolência do meu delicado companheiro, quando ele me observou, rebatendo o meu susto com um sorriso: - Não é o que cuida! Está cá dentro o objecto que lhe convém. E dizendo isto, sacou da chapeleira, suspenso por uma aparatosa borla de retrós preto, um barrete de veludo ornado de amores-perfeitos bordados a matiz. Hesitei por um instante entre aceitar o barrete, o que era hediondo, e confessar-lhe medo, o que era pueril. Revesti-me finalmente de todo o meu valor e estendi a dextra para o inocente carapuço, que estava sendo na mão do sr. S. M. gládio da suprema justiça, alfange exterminador da minha pecadora vaidade. Fechei em seguida os olhos como quem vai lançar-se em um abismo, peguei no barrete com ambas as mãos, levantei-o à altura do rosto, deixando-lhe a borla pendente, entreabri os olhos e vi o monstro boquiaberto... Tornei logo a cerrar as pálpebras, e meti a minha infeliz cabeça no seu novo envólucro! Estava consumado. A minha gentil companheira deu-me o golpe de misericórdia inclinando-se para mim, pegando-me em ambas as mãos e dizendo-me entre duas gargalhadas: Valor! acredite... que o amo. Respondeu-lhe o silêncio da morte. O barrete de veludo, circundado do matiz dos amores-perfeitos, cuja borla me caía como o crepe funerário de uma lança ao longo da orelha esquerda, era o túmulo e o epitáfio das minhas ilusões dêsse formoso dia! Ser amado, tendo na cabeça um barretinho de veludo com sua borlazinha ao lado, pedindo para cima da outra orelha a pena de pato ramalhuda e majestosa, insígnia burocrática do guarda-mor pontual e do tabelião zeloso! Ser amado, e ouvi-lo assim dizer nessa hora tremenda pela boca mais engraçadamente zombeteira a que Deus permitiu a momice da provocação! Que havia de retorquir eu em tão horrorosa conjuutura? Mover-me para fazer bambolear sobranceira ao meu coração aquela borla fatal como o espanador dos meus afectos juvenis? ajoelhar-me aos pés dela e pôr-lhe nojosamente no regaço aquela cabeça do feitio e da fazenda de uma afrontosa almofada de costura, ou de uma ignóbil pregadeira de alfinêtes?!. Assim os perdi pois, para todo sempre, a ambos: a ela e a ele; a mais encantadora alemã que meus olhos têm visto e o mais bonito chapéu que em minha cabeça tenho pôsto!

* * *

Encerra esta pequena história a imagem da felicidade e por isso ta dedico a ti, meu querido Júlio, a quem a desejo mais completa e mais perfeita. O que é desgraçadamente a fortuna senão esse chapéu que um pé-de-vento arrebata, e esse amor que a presença de um barrete extingue?»

2007-03-10

"A Peste", Albert Camus (excerto adaptado)

Na manhã do dia 16 de Abril, o doutor Bernard Rieux saiu do seu consultório e tropeçou num rato morto, no meio do patamar. Nesse momento, afastou o bicho sem lhe prestar atenção e desceu a escada. […]
[…] No momento em que o médico entrou, o doente, meio erguido no leito, encostava-se para trás numa tentativa de restabelecer a respiração penosa de velho asmático. A mulher trouxe uma bacia.
- Hem, doutor – disse ele durante a injecção - , eles saem, já viu?
[…] foi mais ou menos por esta época que os nossos concidadãos começaram a inquietar-se com o caso, pois a partir do dia 18 as fábricas e os depósitos apareceram enxameados de centenas de cadáveres de ratos. Em alguns casos, foi necessário acabar de matar os bichos, cuja agonia era demasiado longa. Mas desde os bairros exteriores até ao centro da cidade, por toda a parte onde os nossos concidadãos se reuniam, os ratos esperavam em montes, nos caixotes do lixo ou junto às sarjetas, em longas filas. A imprensa da tarde ocupou-se do caso a partir desse dia e perguntou se a municipalidade se propunha ou não agir e que medidas de urgência tencionava adoptar para proteger os seus munícipes dessa repugnante invasão. A municipalidade não se tinha proposto coisa nenhuma, mas começou por reunir em conselho, para deliberar. […]
Porém, nos dias que se seguiram a situação agravou-se. O número de roedores apanhados ia crescendo e a recolha era cada manhã mais abundante. A partir do quarto dia, os ratos começaram a sair para morrerem em grupos. Das arrecadações das caves, dos esgotos, subiam em longas filas titubeantes, para virem vacilar à luz, girar sobre si mesmos e morrer perto dos seres humanos. À noite, nos corredores ou nas ruelas, ouviam-se distintamente os seus guinchos de agonia. De manhã, nas ruas, encontravam-se junto aos passeios, com uma pequena flor de sangue no focinho pontiagudo, uns inchados e pútridos, outros rígidos e com os bigodes ainda hirtos. Na própria cidade, encontravam-se em pequenos montes, nos patamares e nos pátios. Vinham também morrer isoladamente nos vestíbulos administrativos, nos recreios das escolas, por vezes nos terraços dos cafés. Os nossos cidadãos, estupefactos, encontravam-nos nos locais mais frequentados da cidade. […]
[…] Até então, as pessoas tinham-se apenas queixado de um espectáculo um pouco repugnante. Compreendia-se agora que este fenómeno, de que não se podia ainda avaliar a amplitude nem precisar a origem, tinha qualquer coisa de ameaçador. Só o velho espanhol asmático continuava a esfregar as mãos e a repetir com uma alegria senil: «Eles saem, eles saem.» […]

A morte do porteiro, pode dizer-se, marcou o fim deste período, cheio de sinais desconcertantes, e o início de um outro, relativamente mais difícil, em que a surpresa dos primeiros tempos se transformou, pouco a pouco, em pânico. Os nossos concidadãos – era agora que davam por isso – nunca tinham pensado que a nossa pequena cidade pudesse ser um lugar particularmente designado para que os ratos lá morressem ao sol e que os porteiros lá perecessem de doenças estranhas. […]
[…] No dia seguinte ao da morte do porteiro, grandes brumas cobriram o céu. Chuvas diluvianas e curtas abateram-se sobre a cidade, seguindo-se a estas bátegas breves, um calor de tempestade. […]
Cozia, com efeito, mas nem mais nem menos que uma febre. Toda a cidade tinha febre. […]
[…] Apenas em alguns dias, os casos mortais multiplicaram-se e tornou-se evidente, para aqueles que se preocupavam com esta moléstia curiosa, que se tratava de uma verdadeira epidemia. […]
Rieux reflectia. Pela janela do escritório, olhava a falésia rochosa que se fechava, além, sobre a baía. O céu, embora azul, tinha um reflexo baço, que se esbatia à medida que a tarde avançava.
- É verdade, Castel – respondeu. É quase incrível, mas parece-me bem que é a peste. […]
A palavra «peste» acabava de ser pronunciada pela primeira vez.
...
Este é um romance que vale a pena ler. Albert Camus (Prémio Nobel) não só relata os factos que o título deixa adivinhar como também os sentimentos, muitas vezes contraditórios, que «a peste» provoca nos habitantes da pequena cidade de Orão, que se vê de repente fechada ao exterior por força de um mal desconhecido.

2007-03-07

"Soneto da Fidelidade", Vinicius de Moraes

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

2007-03-06

"O Rato", Agustina Bessa Luís (conto)

A história que vou contar não se passou comigo, mas com um amigo meu que vive na Dinamarca. Não a posso imaginar aqui porque o seu principal personagem, um desratizador profissional, se não estudou numa Universidade que se poderia chamar Andersenrat, assim parecia. Quando eu andava no colégio, havia à porta da "casinha", ou seja, da casa de banho, uma freira velhíssima que compunha terços quebrados e possuía um diploma de cerzideira de meias atribuído na Suíça. São países dum grande rigor e eficiência com os quais não nos podemos comparar. Por isso, Hamlet não parece dinamarquês, ou então deu-lhe para destrambelhar.
O meu amigo, a quem chamarei Klaus, deu com um rato na cozinha. Não esperou para ver se ele estava de passagem, se era emigrante ou simples figura de lenda. Chamou o desratizador. Este era um homem alto, de calças amarelas e que bebia água a toda a hora. Trazia com ele uma garrafinha de água e abria-a com muito cuidado, não fosse sair de lá o génio da lâmpada, ou da garrafa, melhor dito.
A primeirta coisa que fez foi proibir a Klaus a entrada na cozinha enquanto decorresse a operação. Pareciam manobras militares e, como Klaus punha na estereofonia um compacto da Tannhäuser, o acompanhamento dava calafrios.
O desratizador espalhou farinha no chão da cozinha e dois dias depois sabia o peso, a idade e o tamanho do rato. A farinha deixou escritas as impressões das quatro patas e o comprimento da cauda. Pelo comprimento da cauda soube a idade do rato, e assim por diante.
Há quem se impressione com a cauda dos ratos, por ser pelada e parecer um verme, uma espécie de parasita. Outros não gostam das orelhas, não sei porquê, decerto pelo tom róseo e sem penugem. Havia um domador de leões que tinha medo dos ratos; mesmo enjaulados faziam-no estremecer. E, no entanto, os seus quatro leões, pachorrentos, é bem verdade, obedeciam às suas ordens e temiam-no.
O rato era digno do seu inimigo. Parecia ter frequentado também um curso de tropas especiais e conhecia todos os sons e todos os cheiros da cozinha. Conhecia o pingar da torneira no lava-loiça, o leve e picante cheiro duma casca de cebola e o bolor do queijo, que o punha doido. Porém, não se aproximava da ratoeira senão até ao milímetro fatal. Voltava para trás, todo empoado de branca farinha como um pierrot, e cada vez mais o seu coeficiente de inteligência crescia. E o do desratizador, assim, assim.
- Pode crer - disse ele a Klaus - que um rato sabe da sua cozinha numa hora o que você não sabe em trinta anos. Sabe o que guarda nos armários, o que deve escolher e desprezar; sabe onde estão as tábuas podres, os esfregões usados, o sabão seco, os cotos de velas que, quando tem fome, não desdenha comer. Comer e não saborear. Para saborear há coisas mais suculentas. Óleos, manteigas, toucinhos, certos papéis, algum recheio de almofadas e (vejam bem!) canos de borracha. Um rato pode viver um ano numa cozinha e só percebermos que ele anda lá quando o cano da água de lavar a loiça se rompe e provoca uma inundação. Foi o rato que lhe abriu um buraco para aspirar e embriagar-se com os cheiros dos restos, pequenas ervilhas, gorduras e uma ou outra casca de queijo emental, ou suíço, ou gouda, que se pegou ao ditoso cano.
O desratizador, passadas duas semanas, disse:
- É um rato que tem uma dieta. Pode ser mais velho do que eu pensava, porque mantém a linha e agilidade. Come muitos cereais e não prova o açúcar.
- Talvez pense que é veneno - disse Klaus, muito desanimado. Continuava a estar privado da cozinha e até saía para tomar o pequeno almoço na pastelaria. Trazia para casa croissants e fiambre e pãezinhos doces e resistia a reparti-los com o rato. Começava a antipatizar com o desratizador.
Um rato não pensa, não precisa de pensar. Faz melhor que isso, como todo o predador. Um predador usa os sinais que a natureza lhe manda de todos os lados, e um rato da cidade, além da natureza, tem uma rede de informações prodigiosa. Tudo vibra, range, brilha, escorre, tanto as pessoas como os objectos fazem variadíssimos ruídos, cheiram de toda a maneira e, sobretudo, avisam da sua presença. O rato sabe logo se a pessoa é aleijada, se usa bengala, se sofre da bexiga, se usa sapatos ou chinelos. Sabe que onde se ouve música não há muito a temer. A música abafa a caminhada do predador, assim como as grandes famílias são mais seguras para ele. Quando nós jantávamos todos vivos à volta da mesa, a falar alto e a minha mãe a dar ordens e contra-ordens à criada de sala, havia um ratinho que se pendurava no galheteiro que estava em cima do aparador e olhava para nós como se estivesse no teatro. Parecia deliciado. E decerto se sentia em segurança, dado que o calor das discussões lhe transmitia ondas de comovida festa de família. Sabia que ninguém estava zangado e não ia acontecer nenhuma loucura como persegui-lo e derrubá-lo de cima do galheteiro.
Mas voltando a Klaus: já tinham passado três semanas e o rato continuava acantonado na cozinha, a cozinha dele, porque era o seu território, com a cesta do seu pão, com o seu papel dos fritos e uma sertã ainda com pequenas barbatanas de peixe frito. Ele gostava de peixe frito. Klaus tinha a certeza de que ele fazia sanduíches de ovo e anchovas. Mostrai-me um rato que goste de anchovas e digo-vos onde está um bom europeu.
Aproximavam-se as férias do Verão e Klaus queria navegar no seu barco que estivera todo o ano no estaleiro, o que lhe custara uma fortuna. Mas dava o dinheiro por bem empregado porque gostava do mar como um rato gosta de queijo. Já não consigo afastar-me do assunto, o que, numa história, às vezes, é indispensável. Klaus convidou a sua ex-mulher a passar uma tarde no barco, aproveitando o primeiro sol de Junho, e esqueceu o rato e o desratizador. Quando voltasse (entretanto fez uma viagem e achou tudo muito mudado, que é o que acontece a quem faz viagens) esperava encontrar tudo resolvido e apenas lhe restava pagar ao desratizador e tomar conta outra vez da cozinha. Mas as coisas não se passaram assim. Nada tinha mudado e o rato continuava a andar por cima da farinha e estava cada vez mais inteligente.
- Que é que eu faço? - disse Klaus. - Estou tão aborrecido que ainda me caso outra vez com a minha ex-mulher, ou vou meter-me no museu dos vikings a contar os pregos dos barcos um por um. Acho que o rato e eu acabamos por nos entender, se você deixar.
- Isto não é possível. - O desratizador não estava em si de tão contrariado. - Eu tenho que fazer o meu serviço. É para isso que me pagam.
- Eu pago-lhe na mesma.
- Mas não me pode pagar se eu não fizer aquilo para que fui chamado. Tenha paciência e espere.
Klaus, como não podia servir-se da cozinha e estava cansado de comer arenque fumado, aceitou um convite da ex-mulher para jantar lá em casa. Primeiro duas vezes por semana, depois todos os dias. Isto deu como resultado reatarem as relações antigas e, de bons amigos que eram, tornaram-se ainda melhores. Já não se lembravam porque se tinham separado; provavelmente eram muito novos quando se casaram e não faziam outra coisa senão encontrar defeitos um no outro. Era um jogo do empurra, e aquilo não parecia nada bem. Mas quando se trata de amor, cada um faz o que quer porque se pensa que o amor, como na guerra, permite tudo. Ora, até o pacto de Genebra estabelece que na guerra nem tudo é permitido. Mas como não há um pacto de Genebra para o amor, cada um faz como entende.
O tempo em que Klaus esperou a morte do rato foi um tempo de razoável felicidade. Ele e a ex-mulher tornaram-se companheiros inseparáveis e até arranjaram emprego na mesma zona da cidade. Aqui tenho que dizer que no Brasil não se diz zona por ser o domínio das prostitutas e gente assim. Mas aqui pode dizer-se zona à vontade, e bicha e veado, que ninguém fica a olhar para nós como se estivéssemos a cometer uma terrível indiscrição.
Entretanto, vou-vos dizer quem era Klaus, o meu amigo. Era arquitecto e tinha saído de Portugal quando da guerra das colónias; era, portanto, um emigrante político. Era um pacifista, como se vê pela história do rato a que chegou a dar um nome e a querer que o desratizador falhasse nos seus intentos. Mas o desratizador até aos domingos ia ver o que se passava na cozinha de Klaus.
- O rato está mais gordo, vê-se pelo rasto que deixa na farinha. E também está mais esperto. Bebe a água da torneira e põe-se debaixo para apanhar a gota que cai de quarenta em quarenta segundos. Às vezes, ele vai inspeccionar o armário das provisões e quarenta segundos depois lá está para receber a gota de água, bem certeira, na boca aberta.
- É um prodígio - disse Klaus. E a ex-mulher repetiu:
- É um verdadeiro prodígio. - Tinha amadurecido e sabia que repetir o que um homem diz é a chave do sucesso no casamento. Agora arranjava-se mais e penteava-se no cabeleireiro, de vez em quando, e punha rolos no cabelo fino, dum loiro esbranquiçado. Klaus lembrou-se: tinha-se separado por causa da cor do cabelo dela. Parecia manteiga fervida. Mas agora não se importava. Falavam muito um com o outro, do rato e doutras coisas. Ela tinha uma graça que Klaus nunca suspeitara.
- Klaus - disse ela (o nome dele era Cláudio Pinto, mas mudara para Klaus) - podíamos ir para a neve, no Inverno.
- Mas neve é o que não falta aqui - disse Klaus, muito surpreendido e assustado porque o tempo das viagens já ia longe. Agora preferia ouvir música e ficar quieto.
- Pois sim. Mas não temos montanhas. A neve sem montanhas não parece neve. Suja-se logo e torna-se em gelo escorregadio. Eu gostava de ver a neve nas montanhas e os pinheiros carregados e os coelhos a aparecer nas tocas num dia de sol.
A ex-mulher estava a ficar muito romântica, e Klaus deu por isso. Expusera-se demais e tinha medo do que podia acontecer. Faltava-lhe a esperteza do rato que sabia parar a tempo, um milímetro antes da ratoeira. Pensando nisso, voltou a casa e espreitou para dentro da cozinha. Ali estava um efeito de neve muito confortável, com toda a ranca farinha espalhada pelo chão. E as patinhas do rato estavam impressas por cima como se fosse uma forma de escrita. Talvez fosse uma forma de escrita, ele era bastante inteligente para isso. Sentiu admiração por ele. "É um rato como deve ser" - pensou.
Isto era um grande elogio. Entretanto, a ex-mulher de Klaus, que tinha dois filhos dum primeiro casamento, juntava dinheiro e dizia:
- É para quando formos velhos. Os velhos precisam de ter dinheiro, senão ninguém quer saber deles.
Toda a gente tinha regalias sociais, havia hospitais para curar as pessoas e outros para convalescer. Mas a ex-mulher continuava a dizer que era preciso ter dinheiro para quando a velhice chegasse. Sentia-se sempre insegura, por mais cartões de crédito que tivesse, e Klaus aborrecia-se com isso. Um dia parou diante da estátua de Kierkegaard, que devia ter sido um homenzinho enfezado, e pensou que ele se parecia com o rato. Não um rato de laboratório mas de cozinha ou, se quiserem, de biblioteca. Como escapara ao casamento, intitulando-se um sedutor cheio de manhas, era duma esperteza de rato. Klaus olhou para ele, no entardecer escuro da cidade, e lembrou-se que ele morrera no mesmo dia em que se lhe acabou o dinheiro.

- Meu bom Soren, és mesmo um tipo com quem se pode contar. Parece que a sobrecasaca não te serve, mas é só porque és meio corcunda e gostas de parecer ainda mais corcunda- A tua sedução está em saberes ser pior do que és. Como o rato da minha cozinha. Acho que vou voltar para lá.
Mas a ex-mulher não deixou. Estava cada vez mais prestável e os filhos dela ajudavam-na a ser prestável. Tratavam Klaus por pai e deram-lhe uma carteira em pele de lagarto pelo Natal. Ele fingiu-se agradecido, mas é preciso muito mais para um homem ficar agradecido. Ia para o fiorde e o vento soprava na água como se fosse derrubá-la. Não se derruba a água, ela não tem pés nem raízes: todavia, sustenta-se como se os tivesse.
Um dia, desratizador encontrou-o na rua e foi falar com ele. Estava entusiasmado, ainda que isso só se percebesse porque o lado esquerdo do bigode tremia. Ele disse:
- Tenho uma boa notícia para si. Estive ontem na sua cozinha e o rato estava morto. Agora já me pode pagar.
- Como morreu? - Klaus sentiu uma dor no estômago e outra na perna direita. As emoções não escolhem lugar. Morreu com veneno ou foi electrocutado?
- Nada disso. E, sabe? Não acasalava, e por isso não trouxe uma fêmea com a ninhada. Eu não diria que era um rato velho, mas talvez fosse. Tinha já os bigodes brancos. De qualquer modo, deu-me que fazer. Há dois anos que estava na sua cozinha e não deixou pedra sobre pedra. Nem um grão de arroz. Tinha uma dieta muito equilibrada, apesar de tudo. Estava manco, talvez uma artrose, talvez isso. É preciso avisar os vizinhos.
Klaus ficou desolado. Tinha casado com a ex-mulher e vivia na casa dela com os filhos dela que pareciam duas morsas e que continuavam a chamar-lhe pai. Não podia imaginar Kierkegaard a viver com duas morsas na mesma casa. Que esperto que ele tinha sido! Andou durante um tempo pensativo e um dia em que, por acaso, viu o desratizador num centro comercial, perguntou-lhe:
- Como é que eu podia comprar um rato?
Ele tirou do bolso uma agenda preta, dessas que têm junto uma máquina de calcular, e folheou-a com profunda atenção:
- Só daqui a três anos é que tenho um rato disponível.
- Como? - disse Klaus, estupefacto.
- Não imagina a quantidade de homens que querem um rato na cozinha. - O desratizador coçou o queixo e disse: - Homens como você, que me chamaram para matar um rato e que foram vítimas das consequências, as consequências, senhor Klaus! É disso que eu vivo e não de matar ratos. É um ofício mal pago e que não dá nem para a água. - Tirou a garrafinha do bolso e bebeu um trago. Tapou-a rapidamente, não fosse sair de lá um génio. E não se sabe o que seriam as consequências.